Diálogos da Fé

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A memória viva das mulheres negras evangélicas resiste

‘Esquecendo Flora’ é a prova fria e injusta de que o racismo existe e está nas instituições religiosas de forma sofisticada e sutil

Imagem: iStock
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No dia 13 de maio de 2023, completamos 135 anos da abolição oficial da escravidão no Brasil.  A lei, a famosa Lei Áurea, deu liberdade a milhões de descendentes de pessoas africanas sequestradas para o trabalho forçado sob a condição de escravidão em um longo processo de genocído conhecido como Maafa, ou a tragédia negra.

Foi nessa mesma semana, de importante reflexão histórica e política, que conhecemos o documentário Esquecendo Flora, com direção e roteiro de Beto Oliveira, com Mayra Kristina Camargo como co-roteirista. O filme foi exibido nas dependências da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo (SP), por meio da articulação entre o Movimento Negro Evangélico, a Rede de Mulheres Negras Evangélicas e o grupo de pesquisas e estudos Mandrágora (UMESP). A obra identifica bem a responsabilidade das igrejas protestantes e evangélicas ante as consequências do sistema escravocrata na sociedade brasileira até hoje.

Enquanto eu assistia ao filme, lembrava das palavras do Evangelho: “Fazei isto em memória de mim”, disse Jesus diante dos seus amigos. A memória que de geração em geração sustentou a fé cristã em seus primórdios tempos. Essa memória que nos convida a reconhecer como o cristianismo chegou à vida de  Flora Maria Blumer de Toledo.

Ela foi uma mulher negra, nascida escravizada e alforriada pela missionária metodista Martha Watts, em 1881. Flora trabalhou por anos no Colégio Piracicabano (na região conhecida como Mississippi Paulista, imaginem!) e se tornou a primeira mulher preta a ser admitida como membro em uma igreja protestante no Brasil, em uma época em que as igrejas de brancos e as de negros eram segregadas.

Celebramos a obra que foi produzida pela Frame7, porque, diante da ausência de amplos registros históricos sobre a participação do protestantismo no sistema escravocrata brasileiro, podemos recorrer a este importante instrumento de conscientização para a reparação histórica. O tom da denúncia também perpassa toda a narrativa para provocar todos os que ainda insistem em que no Brasil o racismo já foi superado.

A própria história de Flora é a prova fria e injusta de que o racismo existe e está nas instituições religiosas de forma sofisticada e sutil.

O apagamento segue acontecendo de forma atualizada nos dias atuais. Mesmo com um número majoritário de integrantes femininas negras, as igrejas evangélicas, de uma forma generalizada, seguem reservando lugares de silêncio e serviço para pessoas negras. E, embora não haja nenhuma desonestidade ou vergonha nas atividades de serviços domésticos e de cuidados, precisamos reconhecer que esses espaços são socialmente desvalorizados e automaticamente associados a pessoas negras, fora e dentro das igrejas.

É fácil constatar que quem cozinha ou limpa na igreja quase nunca lidera ou decide. Assim foi com Flora, e assim continua sendo com milhares de mulheres negras nas igrejas. Seguimos sendo ensinadas que não há outro lugar para estar na comunidade de fé que não seja na beira de uma mesa de cantina ou com uma vassoura na mão. É como se dissessem: “nós deixamos vocês participarem, deixamos vocês cantarem, dizemos palavras de confortos a vocês, ensinamos a serem como nós e vocês até pregam! O que mais vocês querem?!”

A voz silenciada de Flora ecoa através de sons proféticos de inúmeras mulheres negras, teólogas e leigas, que ao longo dos últimos 30 anos têm sido lançadas ao ostracismo, à invisibilidade e ao desamparo social pela institucionalidade das igrejas protestantes. E por quê? Porque essas instituições se recusam a reconhecer que seguem reproduzindo práticas racistas.

Eles resistem ao arrependimento dessa grave falta ética e repactuam acordos de silêncio em seus concílios e conselhos pastorais, criando justificativas injustificáveis. O amor ao poder e ao conforto de não partilhar espaços de influência mantém esses líderes surdos a essas vozes proféticas.

A homilia, ensinada em seminários teológicos, chegou nas tantas periferias negras do País com o conselho pastoral de esquecermos a história que a cor da nossa pele nos conta. Líderes brancos dizem: agora “somos uma nova criatura em Cristo e o passado deve ficar para trás”…  Passado marcado pela violência religiosa e física quando demonizam nossos antepassados por serem pessoas africanas e nativas indígenas.

Enquanto isso, o passado deles segue sendo enaltecido. Suas raízes ancestrais alemãs, italianas, norte-americanas, entre outras, são celebradas sem restrições, mesmo que estejam cheias de memórias que exigem confissão de pecados e de atrocidades cometidas contra pessoas africanas e indígenas.

Somos a memória da Flora em muitas situações: quando chegamos nas igrejas exaustas da jornada de 60 horas semanais, ou tristes pelas humilhações vividas no trabalho, dos assédios que sofremos nas ruas ou no transporte público, cansadas da ingratidão de homens violentos, angustiadas pelo amor que sentimos por nossos filhos e filhas homossexuais e transsexuais rejeitados pela igreja…

Somos a memória da Flora quando nos ouvimos e nos acolhemos, quando dedicamos madrugadas em orações e vigílias, quando alimentamos nossos semelhantes famintos, quando não negamos abraços a quem nos procura. Somos memória de Flora quando cuidamos e limpamos com zelo e gratidão os ambiente de culto e celebração e erguemos nossas mãos aos céus pela dádiva de ainda estarmos vivas, apesar de tudo!

Por isso, Flora, minha irmã em Cristo e ancestral, nossas vidas honram sua memória. O corpo e o sangue de Cristo nos fazem lembrar do seu corpo e do seu sangue que foram admitidos na igreja de cultura branca desde que estivesse sentenciada a nunca ser lembrada por ela. Ruah nos traz à memória tudo que ouvimos e aprendemos do Mestre Jesus de Nazaré: não estamos sozinhas! A mensagem de esperança permanece conosco e juntas estamos à mesa com Ele, pela nossa dignidade, das que vieram antes e das que virão depois!

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