Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

A estranha mania de ter fé na vida das mulheres negras evangélicas

‘Eu reivindico essa fé, uma fé que faz uma mulher lutar contra as opressões e ser protagonista de sua espiritualidade’

Créditos: Divulgação
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Estamos no mês da Mulher Negra Latino-americana. No dia 25 de julho comemoramos o dia de Tereza de Benguela, no Brasil, e o dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Como uma mulher negra evangélica, gostaria de falar sobre a luta antirracista das mulheres negras dentro do campo evangélico, começando por Sojourner Truth.

A afirmação “E eu não sou uma mulher” que está presente no imaginário do Feminismo Negro, e é tão simbólica para nós mulheres negras, foi dita por uma mulher negra evangélica. É importante recuperarmos isso, para entendermos que negras evangélicas que denunciam o sistema racista e machista, por meio de suas espiritualidades, não são novidade – embora queiram nos fazer acreditar que o progressismo evangélico é uma coisa recente.

Truth nasceu escravizada em Swartekill, Nova Iorque, mas escapou com sua filha pequena para a liberdade em 1826. Depois de ir ao tribunal para resgatar seu filho em 1828, ela se tornou a primeira mulher negra estadunidense a ganhar um caso como este contra um homem branco, justamente por seu filho ter sido vendido de maneira ilegal, quando as vendas de pessoas negras tinham sido abolidas nos EUA.

Seu nome era Isabella Boumfree. Sojourner Truth foi o nome que ela assumiu para se identificar como pregadora do evangelho. Ela já fazia o que chamamos de Teologia Feminista Negra, no século XIX. E demonstra, em seu discurso, perspectiva de gênero, ao afirmar que Cristo nasceu de uma mulher, colocando Maria como protagonista da história cristã da Salvação, na contramão do lugar passivo que o patriarcado a colocou.

Em 1851, durante a Women’s Convention, em Ohio, em Akron, ela profere o discurso que ficou conhecido como “Ain’t I a Woman” (E eu não sou uma mulher) pelo qual chama atenção para o fato de que entre as pessoas negras há mulheres e que entre as mulheres, há pessoas negras. Isso, em uma época em que se pensava escravos como homens, e mulheres como brancas. Truth, então, aponta para o que chamamos de “Interseccionalidade” e, mesmo sem ter formação teológica, faz uma interpretação do texto bíblico da perspectiva interseccional da mulher negra. Truth faz parte do que chamamos da primeira onda do feminismo, na qual as denominadas “Sufragistas” exigiam direitos civis, como o voto.

No Livro E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo, a escritora e feminista negra bell hooks, chama a atenção para o discurso de Sojouner Truth, justamente para o fato de ela reivindicar um lugar no mundo como mulher negra. hooks, também denuncia em seu texto, o fato da luta pelos direitos civis e feministas, desde o final do século XIX até os anos 1970, não incluírem as especificidades das mulheres negras. Um trabalho muito importante que vai embasar as teses da interseccionalidade, juntamente com Lélia Gonzalez e Angela Davis.

No Brasil, também não é recente a movimentação de Negras Evangélicas na luta antirracista. Embora pareça que esse movimento seja recentíssimo – e na maioria das vezes protagonizado por homens evangélicos progressistas -, mulheres negras evangélicas sempre ergueram a voz para denunciar os abusos do sexismo e do racismo, que subordinavam seus corpos nos espaços evangélicos. Nesse sentido, gostaria de homenagear nesta coluna Maria da Fé Viana, mulher negra metodista que, desde 1987, está na luta pelos direitos da população negra no meio protestante.

Escolher um nome para homenagear hoje, foi extremamente difícil, eu poderia falar da Pastora Wall Morais, da Pastora Eliad Santos, da Pastora Ruth, de Vanessa Barboza, da Diaconisa Liz Guimarães, de Elizabete Pereira, da Pastora Flávia Sá, de Aloá Dandara, de Gicélia Cruz, de Selenir Corrêa, e devo ter cometido omissões importantes aqui.  São tantas que não têm o espaço midiático, mas estão diuturnamente em suas comunidades de Fé batalhando na luta do antirracismo.

Mas todas essas irmãs hão de concordar que Maria da Fé resume bem a nossa estranha mania de ter Fé na Vida. Conheci Fézinha, como é amorosamente chamada, por meio do Movimento Negro Evangélico. Tive a oportunidade de entrevistá-la para a minha tese de doutorado em construção, acompanhá-la em sua rotina espiritual e assistir a uma linda aula na escola Dominical em uma igreja de São João de Meriti (RJ), cidade na qual ela cresceu e constituiu família. Na aula, ela qualificou Joquebede, mulher de Moisés, como “uma negona arretada”.

Fézinha é como uma avó cheia de sabedoria e ancestralidade. Cozinhamos juntas, comemos juntas, conversamos um tanto (que não daria para escrever aqui). Mas a mensagem que queria trazer neste texto em homenagem às mulheres negras evangélicas, é que há muita luta no meio religioso, neste Brasil. Muita resistência de mulheres que sabem o que é ter seus filhos expostos à violência, que sabem o que é falta de educação, saúde, cultura e respeito nas periferias deste Brasil.

Fézinha me disse que foi no movimento negro da cidade de São João de Meriti, nos anos 1970, que ela entendeu seu lugar no mundo de mulher negra evangélica, e que sua espiritualidade deveria levar em consideração seu lugar no mundo. Uma fé ativa, uma fé corajosa e com olhar amoroso para todas as pessoas.

Eu decidi, neste dia, saudar as mulheres que trilharam antes de mim, essa nossa caminhada de mulheres negras evangélicas, que são 26% da população evangélica, no Brasil, mas não são nem 2% das lideranças evangélicas com expressão em nosso território.  E também alertar às pessoas que a intersecção entre raça, gênero, classe e evangélicas está presente em ocidente colonizado por cristãos. Não podemos negar que esta religião foi responsável por justificar o horror da escravização – mas é nas contradições do capitalismo que surge a flor da resistência. Não seria diferente no meio evangélico.

Eu reivindico essa fé, uma fé que faz uma mulher lutar contra as opressões e ser protagonista de sua espiritualidade.

No meio evangélico, há uma expressão que chama “ousadia do Espírito”. Eu enxergo em Sojourner Truth e em Maria da Fé, e em tantas de nós,  esta ousadia: que chama para a liberdade, que clama contra as injustiças e que segue rumo a uma terra prometida com equidade para todas as pessoas!

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