Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Há uma guerra em curso contra a Amazônia e os povos indígenas

Durante o governo Bolsonaro, 795 indígenas foram assassinados no Brasil, segundo relatório divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário

(Reprodução)
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A questão surgiu recentemente na exibição do documentário “Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia”, na Cinemateca, em São Paulo. Durante o lançamento,  a palavra guerra no título suscitou um debate intenso com a platéia. Pode-se realmente considerar o que acontece na Amazônia como uma guerra?

Um dos debatedores, o repórter Yan Boechat, escolado por cobrir dezenas de guerras na África, Oriente Médio e Europa, ponderou sobre a questão semântica e as diferenças entre uma guerra entre nações e a violência recorrente na Amazônia. A plateia, formada majoritariamente por pessoas afeitas às causas indígenas e ambientais, não concordou. Citaram, inclusive, algumas das falas do Ailton Krenak para argumentar e defender que há, sim, uma guerra em curso na Amazônia.  

“Estamos vivendo em um tempo em que as pessoas são executadas em seringais, em comunidades indígenas, em trilhas, em caminhos, em portos, na beira do rio. É uma vergonha que tenhamos banalizado o sentido da vida a esse ponto. E isso nos põe em guerra”, disse Krenak em uma entrevista em 2020.  

Essa declaração foi precedida de uma observação, de que Krenak pensa assim, pois fala de seu lugar identitário. “O lugar dos povos indígenas, que sofrem um genocídio contínuo, com altos e baixos, mas sem parar”, disse. 

Dias depois do debate na Cinemateca, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou o um relatório que sistematiza toda a violência cometida contra os povos indígenas entre 2019 e 2022, justamente o período em que o país foi governado pelo Jair Bolsonaro (PL). Nesse período, 795 indígenas foram assassinados no Brasil, sendo que 60% das mortes foram em estados da Amazônia Legal. A média anual de casos de violência pessoal nos quatro anos que antecederam a gestão Bolsonaro foi de 245 ocorrências ao ano. A partir de 2019, essa média subiu para 373. 

A tragédia dessas estatísticas se tornou realidade para mim quando, como repórter há duas décadas, passei a me dedicar intensamente à cobertura da violência na Amazônia durante o governo Bolsonaro.

Em 2019, no primeiro ano de Bolsonaro no poder, eu conheci um jornalista inglês e fiz algumas viagens com ele para a Amazônia. Dom Phillips atuando como correspondente do The Guardian e eu pela Repórter Brasil fomos a campo para revelar um esquema de lavagem de gado envolvendo uma gigante nacional e um banqueiro brasileiro. Em outra longa viagem, investigamos e reportamos o episódio que ficou conhecido como Dia do Fogo

Quando Dom sumiu no Vale do Javari, em junho de 2022, entramos em parafuso. Sem saber o que fazer e como poderia ajudar, insisti para ir até lá e fazer a única coisa que sei (ou pelo menos tento), que é fazer jornalismo. Tive a tristeza de cobrir a morte brutal de um amigo.

Decidimos então fazer um documentário. Narrar em primeira pessoa o que sentimos e mostrar o desafio que é cobrir essa Amazônia em guerra, pois é assim que entendemos ao nos aproximar dos povos indígenas que defendem seus territórios com seus próprios corpos. A concepção do documentário foi da Ana Aranha, com quem compartilho a direção. 

No percurso do documentário vi o horror da guerra de perto. Estive no Alto Tapajós, na divisa entre o Pará e o Amazonas, uma região de difícil acesso, acossada por garimpeiros ilegais que invadem as terras do povo Munduruku. Mais que isso. Poluem os rios e o ar com o mercúrio usado no garimpo predatório de ouro. 

O mercúrio usado na separação do ouro ultrapassa a placenta das mulheres e contamina o feto em desenvolvimento até sete vezes mais do que as outras pessoas, causando danos irreversíveis. Vi mulheres cegas e crianças que  não andam e nem falam, com braços e pernas atrofiados e os joelhos inchados e com arranhões de tanto se arrastarem no chão.

Na Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, acompanhamos os Guardiões da Floresta do povo Guajajara. Sem apoio governamental, eles defendem o território com seus próprios corpos e estratégias.  Presenciamos uma ação do grupo com dezenas de indígenas armados com espingardas, pistolas, facões, arcos e flechas. Durante a ação, eles queimaram duas máquinas usadas por madeireiros que invadem o território. 

A ação dos indígenas que defendem seu território é elogiada por organizações de defesa ao meio ambiente, mas eles pagam com a vida ao assumir a responsabilidade do Estado. Em menos de 20 anos, foram mais de 50 assassinatos do povo Guajajara, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).           

Dias depois que deixamos o território, um dos guardiões que acompanhamos foi assassinado. Janildo Oliveira Guajajara. “A polícia não divulgou possível autor ou motivo, mas para a comunidade tudo indica que foi sua função como guardião e os crescentes conflitos com madeireiros invasores o que provocou a morte”, diz o relatório do CIMI sobre a morte de mais uma vítima que tombou nesta guerra em curso.

O documentário Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia terá mais duas sessões previstas, ambas em Belo Horizonte. A primeira em 10 de agosto (quinta-feira) às 19h30 na sede do Sindicato dos Jornalistas. A segunda,  será em 22 de setembro (sexta-feira) às 19h no Cine Santa Tereza. O trailer do documentário pode ser visto abaixo:

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