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Um governo que fere o Brasil ao suprimir a verdade e negar a história

Está claro o equívoco grotesco daqueles que não levaram a sério as declarações de Bolsonaro enquanto candidato

Ernesto Araújo (Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil)
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Negar e revisar a história, essas são as missões espirituais assumidas pelo (des)governo de Jair Bolsonaro. O negacionismo e o revisionismo histórico se tornaram a religião oficial adotada no governo federal. Talvez tenha sido a essa missão que Bolsonaro se referia ao proclamar, em jantar com investidores em Washington DC, nos EUA, que “o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”. Pois bem, desconstruir a história, para reconstruí-la como melhor lhe convém, é a tônica daqueles que pretendem nos governar.

Desde antes mesmo de assumir a Presidência da República, Bolsonaro se tornou famoso pelas declarações alucinadas e completamente dissociadas da realidade e dos fatos históricos. Estas parecem ser não apenas sua marca registrada, mas também tudo o que ele consegue produzir a partir de sua visão de mundo limitada.

Ainda durante a campanha presidencial, o então candidato veio à televisão aberta, em canal estatal – ironicamente o canal aberto que mais explora conteúdos educativos de história – e afirmou que “o português nem pisava na África, eram os próprios negros que entregavam os escravos”. Em um só ato, negou o colonialismo e o genocídio negro nas Américas, para logo depois argumentar que as cotas raciais nas universidades públicas brasileiras não se justificavam.

Na mesma ocasião, Bolsonaro declarou que seu livro de cabeceira era a biografia da figura mais abjeta de todo o período ditatorial brasileiro: o torturador Coronel Brilhante Ustra, a quem o agora o presidente da República venera como herói. A respeito dessa figura, aliás, já havia rendido homenagens e dedicado, de forma perversa e cruel, seu voto no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff – mulher torturada pela ditadura militar e que suporta o ônus da memória do terror. Uma forma de tripudiar da dor alheia que faria até os sujeitos mais nefastos se espantar.

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Nada mudou

Ao assumir o governo, nada mudou. Aqueles que acreditavam que tudo isso não passava de pura encenação, de um personagem para polarizar os debates e criar um clamor contra a esquerda ou, mesmo, de uma tentativa de manter todas as atenções voltadas para ele, se enganaram. Alguns de seus eleitores, especialmente aqueles que não concordavam com suas opiniões mais duras sobre sexualidade, violência e racismo, suavizaram suas declarações e se agarraram à fé cega de que aquilo tudo era apenas performance política para vencer as eleições.

Passados quase cem dias de sua tentativa de governar, está claro o equívoco grotesco daqueles que não levaram a sério suas declarações enquanto candidato. Bolsonaro continua a se comportar como se estivesse em pleno combate. Aquele combate ao qual se referiu no instante exato em que assumiu o poder executivo federal e proclamou seu discurso de posse: “me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo”.

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No caso, apresentar-se como a antítese da esquerda era nada mais que um engodo supérfluo. O candidato Geraldo Alckmin, do PSDB, até então o partido capitalizador dos votos da direita brasileira, repudiou tais declarações. “Esses pré-candidatos que flertam com a intervenção militar e a ditadura não deveriam ser candidatos. Eles não acreditam no regime democrático”, disse o ex-governador de São Paulo. Para a esquerda, Alckmin seria um daqueles inimigos dos tempos civilizados. Mas para o bolsonarismo, não passa de um socialista.

Como bem observaram muitos analistas à época, Bolsonaro não passa de um Dom Quixote, combatendo inimigos inexistentes e entorpecido em seu próprio delírio. A comparação faz sentido, mas, a bem da verdade, é uma tremenda injustiça com o protagonista da obra escrita por Miguel de Cervantes, um personagem ingênuo e de bom coração.

Memorial do Holocausto, em Berlim

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Uma vez no poder, Bolsonaro tratou de nomear o que há de mais grotesco para assumir as principais pastas ministeriais. Uma dessas figuras é o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que assumiu suas funções com o discurso de combater o globalismo (sic) e, na última semana, nos brindou com a dose de revisionismo que lhe cabe nesse (des)governo. Araújo afirmou que o nazismo e o fascismo eram movimentos de esquerda. Mais preocupante do que sua fala em si, é o fato de que muitas pessoas passam a acreditar em suas palavras. Nesta semana, Bolsonaro ratificou essa afirmação em visita ao Museu do Holocausto (Yad Vashem – The World Holocaust Remembrance Center), na cidade de Jerusalém.

Para combater a afirmação – como verdade – de tamanho absurdo, facilmente poderiam ser citados registros históricos diversos, livros, teses e todo o resto produzido e referendado pela ciência (mas, ultimamente, até a ciência está desacreditada, especialmente entre seguidores do bolsonarismo). O próprio portal do Museu do Holocausto afirma que a frustração com a derrota na 1ª Guerra Mundial, “juntamente com a resistência intransigente e as advertências sobre a crescente ameaça do comunismo, criaram um solo fértil para o crescimento de grupos radicais de direita na Alemanha, gerando entidades como o Partido Nazista”.

Contudo, nessa hora, só parece útil lembrar dos escritos do pastor alemão Martin Niemöllen, que em seu famoso poema “E Não Sobrou Ninguém”, já no primeiro verso, descreve:

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“Primeiro, eles vieram atrás dos socialistas, e eu não disse nada – porque eu não era socialista.

Em seguida, eles vieram atrás dos sindicalistas, e eu não disse nada – porque eu não era sindicalista.

Depois eles vieram atrás dos judeus, e eu não disse nada – porque eu não era judeu.

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Então, eles vieram atrás de mim – e já não havia sobrado mais ninguém para protestar por mim”.

Pela lógica do atual governo, a esquerda alemã perseguia os socialistas. Bolsonaro veio com a missão de combater o socialismo. Seria Bolsonaro de esquerda, então? Ironias à parte, não devemos cobrar coerência de negacionistas e revisionistas.

Ofensa e desrespeito à história

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O que há de mais preocupante no discurso revisionista não é o ataque infantil à “esquerda global”, mas sim o disparate perverso de negar a verdadeira causa da morte de milhões de judeus. É uma ofensa à memória do povo judeu, e também um desrespeito à história da Alemanha.

O escritor italiano e judeu, Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz – maior campo de concentração nazista, situado na Polônia – dedicou sua vida a relatar aquilo que testemunhou, com o propósito de que nunca a humanidade se esqueça do que ocorreu, bem como de combater teorias negacionistas do Holocausto. Levi, em sua obra “Os afogados e os sobreviventes” escreve: “Não creio que a vida de um homem tenha necessariamente um objetivo definido; mas, se penso em minha vida e nos objetivos que até, aqui me propus, um só deles eu reconheço bem preciso e consciente, e é justamente este, prestar testemunho”. Em outra de suas obras (Assim foi Auschwitz: Testemunhos 1945-1986), Levi dizia que relatar o Holocausto era “um dever para com os companheiros que não voltaram e é uma tarefa que confere um sentido à nossa sobrevivência”.

Mesmo que Bolsonaro e sua trupe se digam a favor das causas israelenses, isso nada (ou muito pouco) tem a ver com a memória do Shoá. Os judeus sabem, o mundo sabe, e é preciso que todo brasileiro também saiba que o nazismo foi um movimento de extrema direita (assim como o neonazismo também é). Aliás, a principal agência de comunicação pública da Alemanha, a Deustche Welle, rebateu a afirmação de Ernesto Araújo em seu site, descrevendo que: “o absurdo virou discurso oficial em Brasília”.

Na mesma semana das declarações de Ernesto Araújo, Bolsonaro também veio a público para orientar que o Ministério da Defesa organizasse as comemorações do golpe militar de 1964, que culminou com uma sangrenta ditadura no Brasil que perdurou por mais de 20 anos. No dia 31 de março, o governo federal divulgou um vídeo produzido especialmente para negar a existência de um golpe militar, afirmando que as Forças Armadas apenas cumpriram com seu papel. A supressão da verdade, a negação da história, é um crime contra o Brasil do passado, de hoje e do amanhã. Este ato perpetua os crimes contra as famílias que perderam seus filhos nos calabouços da crueldade.

A sabedoria costuma nos dizer que “um país que não conhece seu passado, está pronto para repeti-lo”. Após obliterar a memória com uma lei que anistiou os crimes cometidos por torturadores, o Brasil demorou cerca de 25 anos para finalmente enfrentar sua história. Somente em 2014, no governo de Dilma Rousseff – a presidente eleita que fora torturada pelo regime militar – é que se instaurou a Comissão Nacional da Verdade, responsável por resgatar a memória e os testemunhos do período do regime militar e expor ao público sobre o que se tratava.

O AI-5 foi o golpe dentro do golpe (Foto: Arquivo Nacional)

Coincidência trágica, mas não desprovida de significados, foi a ditadura militar brasileira que torturou e assassinou o jornalista judeu Vladimir Herzog, e negou por todos esses anos que ele tenha sido assassinado. A versão oficial sustentada por anos pelo regime militar é a de que Herzog se suicidou. No ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por não investigar e não punir os responsáveis pelo assassinato do jornalista que se tornou um mártir e símbolo da violência cometida pelo regime ditatorial. Para a Corte Interamericana, a Lei de Anistia brasileira viola o Pacto de São José da Costa Rica, documento que goza de status supralegal no Brasil.

Bolsonaro provavelmente jamais se convencerá da verdade, e embora muitos de seus seguidores estejam no estupor da nova onda fascista por ele coordenada, nosso papel é persistir esclarecendo a verdade. Pode parecer aviltante e desanimador discutir e convencer do óbvio, mas precisamos estar na mesma trincheira onde a batalha ocorre. Não podemos nos calar diante da ignorância que se agiganta. Temos o compromisso de evitar esse legado às futuras gerações. Quem se achar superior demais para debater e rebater mesmo as mentiras mais bizarras, estará contribuindo para sermos assombrados por elas quando um dia estas se tornarem mentiras convincentes.

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