Conjunturando

O primeiro de abril de Jair Bolsonaro?

Na farsa de 2018, ouvem-se os mesmos brados que ecoaram em 1964

Manifestantes acompanham a apuração do resultado eleitoral em frente à casa de Jair Bolsonaro
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Em 2 de dezembro de 1851, mediante um golpe de Estado, Luís Bonaparte pôs fim à breve experiência republicana francesa iniciada em 1848. Presidente da República eleito por sufrágio universal (masculino) e impedido de reeleger-se com base na jovem e frágil Constituição, o sobrinho de Napoleão dissolveu o parlamento e acabou por tornar-se o imperador Napoleão III.

Karl Marx procurou entender como uma nação de então 36 milhões de habitantes pôde ser assim surpreendida por esse Napoleão fake, e “levada ao cativeiro sem oferecer resistência“.

Já se tornou lugar comum a citação, extraída de O 18 de brumário de Luís Bonaparte, de que os grandes fatos e as grandes personagens da história são encenados duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa.

Segundo Marx, “a tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto“, os vivos “conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial“.

Eis que, na farsa de 2018, ouvem-se os mesmos brados de amor à pátria, a Deus, à família e à ordem, de apelo militarista e contra o comunismo que retumbaram na tragédia de primeiro de abril de 1964. O figurino é o mesmo: uniformes militares, bandeiras verde-amarelas, armas e bíblias em punho. O momento não.

Ainda que uma revolução comunista no Brasil não estivesse prestes a ocorrer nos anos 1960, não se pode dizer que o medo fosse anacrônico naquele mundo bipolarizado. Em 2018, entretanto, esse apelo quixotesco seria ridículo, não fosse tão perigoso o delírio nacional.

Ao analisar os fatos a partir de 1848, Marx explica que, à medida que as forças políticas sucessivamente se aliaram às mais reacionárias para impor seus interesses de classe, foram sucessivamente traídas e sucumbiram diante do mote propriedade, família, religião, ordem, e da ideia de salvação da nação. O proletariado foi o primeiro a ser chutado para o escanteio nas jornadas de junho (de 1848, que fique claro). E seguiu-se o mesmo com os representantes da pequena-burguesia e das camadas médias urbanas.

As jornadas de junho, agora sim de 2013, inicialmente manifestações de esquerda, sofreram forte guinada à direita. O PSDB, partido originariamente inspirado na social-democracia europeia, progressivamente aliou-se a setores cada vez mais reacionários, brincou temerariamente com a ordem constitucional vigente ao apoiar o impeachment de Dilma Rousseff e outras arbitrariedades, até o ponto em que sucumbiu, deixando seus caciques históricos perplexos diante do Frankenstein que ajudaram a criar.

Para ficar em apenas um exemplo, mostraram-se emblemáticos, em 2017, tanto os comentários odiosos que recebeu Aloysio Nunes Ferreira nas redes sociais diante da aprovação da Lei de Migração, considerada excessivamente progressista pelos seus seguidores, quanto sua resposta indignada. Não se pode isentá-lo de culpa, visto que enquanto presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado fomentou a patética expedição de tucanos a Caracas dois anos antes, visando apenas a ganhar capital político interno com o discurso “anti-bolivariano”.

São uma salada mista os algozes criados pela direita reacionária: PT, MST, MTST, Venezuela, Cuba, Lula, Maduro, bolivarianos, socialistas, comunistas etc., como fica claro nos discursos inflamados de João Dória, governador eleito por São Paulo. Contra esses moinhos vem a ideia de salvação da nação.

Marx, referindo-se aos acontecimentos da França entre 1848 e 1851, afirma que “a sociedade é ‘salva’ sempre que o círculo dos seus dominadores se estreita, sempre que um interesse mais exclusivo é imposto a um mais amplo. Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais banal democracia é simultaneamente punida como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’“, até o ponto em que triunfa um “salvador da sociedade“.

Pois o salvador chegou, como costuma dizer, contra tudo isso aí.

*Sergio Tuthill Stanicia é Doutor em Direito (USP)

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