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Somos todos Furtadianos

A obra furtadiana é um patrimônio intelectual da modernização brasileira

Autor Vinícius Figueiredo Silva
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Por Paulo Robilloti* e Cristiano Abreu**


Há 100 anos, no dia 26 de julho de 1920, nascia em Pombal, no sertão da Paraíba, Celso Furtado, aquele que se tornaria o economista brasileiro mais lido no mundo, tendo escrito mais de 30 livros ao longo de sua vida. Um dos ilustres intelectuais públicos do Brasil, Furtado se tornou bacharel em direito em 1944 pela Universidade do Brasil (atual UFRJ) e, em 1948, defendeu sua tese de doutoramento em economia na Universidade de Paris, após ter lutado como pracinha na Itália pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) contra o fascismo.

Em sua trajetória, ocupou postos de destaque em diversas instituições públicas, nacionais e internacionais. Sua participação na CEPAL, em 1949, pode ser considerada a experiência mais definidora de sua vida, pois foi onde Furtado recebeu um referencial teórico que o definiria para sempre. É a partir dessa experiência que se compreende tanto sua trajetória teórica como política – esta última marcada por passagens no Grupo misto Cepal-BNDE (em 1953), na SUDENE (em 1959), no ministério do planejamento do governo João Goulart (em 1962) e no ministério da cultura (1986), após ter se exilado em decorrência do golpe militar de 1964. Em 2003, foi indicado ao Prêmio Nobel de Economia.

As homenagens ao seu centenário têm sido um dos temas mais recorrentes nos últimos dias. Não sem razão. A obsessão de Furtado com a superação do atraso econômico e social brasileiro, a partir do que se convencionou chamar de “Teoria do Subdesenvolvimento”, o tornou não só um dos demiurgos do Brasil – ao lado de outros intérpretes tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes –, mas também o arquiteto de uma tradição que pensa a economia do Brasil a partir de suas estruturas internas em conexão com a economia mundial. Neste sentido, não é exagero afirmar que é a partir dos trabalhos de Celso Furtado que o pensamento econômico brasileiro ganharia um estatuto teórico próprio, cuja problemática levou esse autor a ser reconhecido mundialmente como um dos economistas brasileiros mais importantes de todos os tempos, se não o mais importante.

Mas o que faz Celso Furtado ocupar essa posição, quase que sem paralelos, em nossa história do pensamento econômico? A resposta a essa pergunta não é trivial.

Se, por um lado, é verdade que suas teses originárias devam ser compreendidas a partir do chamado “Estruturalismo latino-americano”, cujo pioneirismo nos remete ao Raúl Prebisch – eminente economista argentino responsável pela revolução na “construção teórica” do terceiro mundo enquanto esteve à frente da CEPAL no pós-II Guerra –, por outro lado, Furtado, ainda jovem, fora capaz de avançar tanto do ponto de vista do método como da teoria estruturalista, tornando-a mais refinada e coesa a partir do caso brasileiro.

Do ponto de vista metodológico, Furtado sofisticou o método histórico-estrutural ao refinar o estudo das estruturas do subdesenvolvimento não a partir apenas de fatores econômicos, mas fundamentalmente de sua interação com fatores não-econômicos (isto é, sociais, políticos e culturais) na busca da construção de uma realidade integrada e articuladamente complexa. Fatores como o regime de propriedade da terra, o controle das empresas por grupos estrangeiros e a existência de uma parte da população fora da economia de mercado foram amplamente explorados por Furtado, e integram a matriz estrutural do modelo com que trabalham todos os economistas da tradição cepalina. Claramente notamos que, sem o olhar paciente e integrador de Furtado, o método estruturalista teria uma lacuna.

Já do ponto de vista teórico, Furtado atacou uma frente distinta da de Raúl Prebisch. Enquanto o economista argentino se debruçou sobre os contornos teóricos lato do estruturalismo, como a perversidade do esquema centro-periferia e a deterioração dos termos de troca, Furtado ofereceu um contorno mais stricto desse fenômeno, ao se concentrar nas estruturas internas do subdesenvolvimento, especialmente como elas são continuamente reproduzidas na história. Neste sentido, tomemos sua obra-prima “Formação Econômica do Brasil” como ponto de partida. Ainda que seja uma “colcha de retalhos”, na medida em que reúne reflexões do autor em momentos distintos de sua trajetória intelectual até 1959 (data de sua publicação), ela pode ser interpretada menos como um livro tradicional de história econômica, e mais como uma obra pavimentada pela teoria econômica para a qual a história se torna um recurso retórico para provar a validade das teses cepalinas. O esforço do autor se deu no sentido de reconstituir a história econômica para explicar como as características essenciais do subdesenvolvimento foram sendo repostas em todos os nossos ciclos de acumulação.

Desde a economia açucareira no século XVI até o desenvolvimento de uma economia de base industrial no século XX, o autor mostrou como a dinâmica da economia brasileira foi marcada historicamente pela reiteração de caraterísticas estruturais que entorpecem o desenvolvimento econômico e social brasileiro. Tais características nos remontam à crônica concentração de renda, à elevada dependência externa e à persistência da tendência ao desequilíbrio externo da economia brasileira. A essas características, somam-se o desemprego e a persistência inflacionária, completando-se o quadro do subdesenvolvimento – quadro ainda dramático em pleno século XXI, tornando suas contribuições teóricas altamente atualizadas em nosso contexto atual.

A tese do autor converge para um ponto em comum, que o livre jogo das forças de mercado é altamente ineficaz para a superação do subdesenvolvimento, sendo necessária, neste sentido, uma persistente atuação do Estado enquanto planejador da industrialização e, assim, indutor do desenvolvimento econômico nacional – uma vez que, sob sua hipótese, o aumento da produtividade causado pela sofisticação do parque industrial brasileiro promoveria uma elevação da renda média da população e, portanto, uma melhora da sua qualidade de vida. Essa sempre foi a chave para a superação do subdesenvolvimento brasileiro, analisado pelo autor como um espelho invertido do desenvolvimento econômico dos EUA.

Longe de romantizar o desenvolvimento econômico norte-americano numa mistificação do livre jogo das forças de mercado, Furtado reconhece o progresso dos EUA numa espécie de “empreendedorismo coletivo”, que conecta o Estado com uma elite comercial e manufatureira. Tal visão se personifica na figura de Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, que funda essa tradição de política econômica consciente em prol do desenvolvimento econômico nacional. O desenvolvimento americano – fruto de ações governamentais deliberadas (as chamadas internal improvement), bem como das mais altas tarifas protecionistas – contrastava com o liberalismo estéril que vigorava no Brasil no século XIX, período no qual os EUA deram seu salto industrial.

Em contraste com a experiência norte-americana, o espectro do desenvolvimento permeia toda a obra furtadiana. No entanto, o economista paraibano também não deixou de se contaminar por boas doses de pessimismo com os rumos da política e economia do Brasil em alguns momentos de sua trajetória intelectual, com destaque para as obras “Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina” (1966) e o “O mito do desenvolvimento econômico” (1974), escritas sob o regime militar, e a elevada concentração de renda que se seguiu ao Golpe de 1964.

Anos mais tarde, no contexto das reformas liberalizantes dos anos 90, Furtado volta a analisar a economia brasileira sob um olhar pessimista, ao sugerir que o desenvolvimento econômico e social no Brasil se interrompera, sem imaginar a elevada desconstrução que a nação brasileira conheceria depois de uma década de sua morte, em 2004. Afinal, desde 2016, nenhuma ideia tem sido mais estranha no Brasil do que a de um Estado indutor do crescimento, do desenvolvimento econômico e redutor das desigualdades sociais. Se Furtado testemunhasse alguns eventos, tais como o esvaziamento do BNDES – cuja participação foi fundamental no último ciclo de crescimento econômico 2008-2014 –, os ataques às Universidades Públicas por meio da negação de sua importância no desenvolvimento científico nacional e, dentre outros, a perda de conquistas dos trabalhadores com a reforma trabalhista, nosso ilustre economista diria que não estamos vivendo apenas uma interrupção do desenvolvimento, mas algo mais profundo, como uma contramarcha do progresso. Nunca na história econômica do Brasil qualquer ambição de um projeto nacional de desenvolvimento econômico foi tão ridicularizada.

A obra furtadiana é um patrimônio intelectual da modernização brasileira, cujo legado tem sido atacado no atual momento político regressivo. Nesse contexto, a cegueira voluntária de nossa elite alimenta uma onda perversamente irracional contra toda tradição intelectual comprometida com qualquer forma progresso – os ataques a Paulo Freire, outro pensador nordestino, são reveladores nesse sentido.

Enquanto houver subdesenvolvimento, o pensamento de Celso Furtado se projeta como um Farol iluminando o futuro e acusando o presente. Cabe a nós manter a utopia furtadiana viva, como forma de frear o desmonte da nação brasileira. Sob este aspecto, inegavelmente somos todos furtadianos!

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*Doutorando em Teoria Econômica – IE/UNICAMP

**Doutorando em História Econômica – FFLCH/USP

Charge de Vinícius Figueiredo Silva

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