Conjunturando

O crepúsculo da democracia

Defender a prisão de Lula é também defender a punição de miseráveis inocentes

Ato de encerramento da caravana Lula por Minas Gerais na Praça da Estação, no Centro de Belo Horizonte
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Alegam os defensores das condenações e da execução provisória da pena do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que seriam decisões revestidas de legitimidade, pois proferidas por órgãos oficiais do Judiciário (13ª Vara Federal de Curitiba, TRF-4 e STF), devendo por isso ser respeitadas, mesmo por aqueles que não concordam com o desfecho: afinal, em uma democracia, mais que respeitar a vontade da maioria, fundamental seria respeitar as decisões de suas instituições.

Concordo e discordo.

Concordo porque, em um espaço democrático, precisamos saber lidar com a pluralidade e a divergência, bem como as instituições democráticas precisam ter independência funcional. Em especial isso se aplica ao Poder Judiciário, que, não sendo composto por membros eleitos pelo povo, detém a função contramajoritária de tutela de direitos e garantias fundamentais. Trata-se do papel de consolidação de uma blindagem de direitos (núcleo rígido e intangível) contra a pretensa vontade de uma maioria que eventualmente queira suprimi-los.

Discordo porque não é qualquer decisão proferida por uma instituição que apresenta legitimidade. Para além de sabermos por quem é proferida (condição necessária), precisamos saber se ela atende ao conteúdo substancial da Constituição e de seus preceitos fundamentais (condição suficiente).

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No que se refere ao HC (habeas corpus) 152.752/PR, no qual se buscava prevenir eventual prisão do ex-presidente, ao claramente assumir a necessidade de inversão da seletividade operada pelos órgãos do sistema penal brasileiro, o discurso do ministro Luís Roberto Barroso foi o de que a execução provisória da pena deveria ocorrer para que criminosos de “colarinho branco” não pudessem passar impunes pela persecução penal.

Para reforçar sua posição, considera, com base nos dados da Assessoria de Gestão Estratégica do STF e na quantidade de 25.707 recursos extraordinários julgados no período de 01.01.09 a 19.04.16, que o número de absolvições no STF seria baixíssimo (0,035%: 9 absolvições em meio a 25 mil recursos).

Além disso, seriam raros os pobres que conseguiriam chegar aos tribunais superiores para rediscutir questões de direito relativas à violação de lei federal (STJ) ou à Constituição (STF) em seus processos criminais, em vista da ausência de recursos financeiros para tanto.

Segundo Luigi Ferrajoli, um dos teóricos do direito e da democracia mais respeitados no mundo, a expressão “Estado de Direito” (apregoada logo no art. 1º da Constituição) implicaria um ordenamento normativo no qual o poder público (em especial, o penal) seria rigidamente limitado e vinculado à lei.

O processo penal democrático seria baseado em um sistema de controle do arbítrio e do erro judiciais, planificando-se em um modelo de certeza relativa pautado na presunção de inocência (in dubio pro reo), segundo o qual nenhum inocente seria punido à custa da incerteza de que também algum culpado pudesse ficar impune.

É exatamente o oposto do que ocorreria em modelos autoritários que trabalham com presunção de culpabilidade (in dubio pro societate): à custa da incerteza de que algum inocente fique preso, é importante que nenhum culpado fique solto.

Diante destas considerações, entendo que devemos ser críticos da prisão do ex-presidente, porque, constitucionalmente, a ele deveria ser dado o tratamento de uma pessoa inocente (como qualquer outro cidadão). E também  por tudo que seu aprisionamento representa neste momento: defender Lula é defender a democracia.

 Para fins de raciocínio e para sustentar minha hipótese, darei um único exemplo: o caso do princípio da insignificância. Segundo o próprio STF, trata-se de um “princípio que consiste em afastar a própria tipicidade penal da conduta, ou seja, o ato praticado não é considerado crime, o que resulta na absolvição do réu”. Desse modo, condutas que lesem de modo irrisório bem jurídico alheio não poderão ser punidas porque, tecnicamente, crimes não serão. 

No caso de crimes patrimoniais, por exemplo, a jurisprudência fixou que, para a aplicação do princípio, o valor da coisa subtraída deveria ser muito aquém de um salário mínimo à data do fato, trate-se de dinheiro, de aparelhos eletrônicos, de roupas, de alimentos ou outros (como aponta a pesquisa coordenada pelo professor da USP Pierpaolo Cruz Bottini).

Sabemos bem a classe social das pessoas que cometem esses ilícitos e acabam por subtrair galinhas, desodorantes, sabonetes, shampoos, colheres de pedreiro, peças de carne etc.

O sítio do STF afirma que, dos 340 habeas corpus analisados pelo Supremo de 2008 a 2010, em 91 dos casos (27%) foi reconhecida a aplicação do princípio, ou seja, 91 pessoas que haviam sido condenadas em outras instâncias foram consideradas inocentes por não terem praticado crime algum. Enquanto pelos cálculos de Barroso teríamos 9 inocentes presos, pela base de dados do próprio STF teríamos 91 inocentes absolvidos após responderem, por vários anos, a processos criminais, seja encarcerados, seja sob o estigma social que carrega quem, em liberdade, apresenta ficha criminal positiva.

Diante disso, não assusta nem um pouco que referências mundiais no campo das ciências humanas e sociais como Eugenio Raúl Zaffaroni (aqui), Boaventura de Sousa Santos (aqui), David Harvey (aqui) e o próprio Luigi Ferrajoli (aqui), dentre tantos outros, tenham se posicionado de forma contundente e crítica à condenação do maior estadista que a América Latina já viu e, incontestavelmente, um dos principais atores políticos da promoção da justiça social em nosso país. 

Não conseguiram destruir sua imagem, como é perceptível na mais recente pesquisa do Instituto Datafolha divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo, na qual Lula mesmo após a prisão, se encontra em primeiro lugar na corrida presidencial, com 31% das intenções de voto.

Como bem sustentou Juarez Cirino dos Santos, em entrevista ao Justificando, o que existiria contra o ex-presidente seriam processos políticos com aparência de criminais, de modo que, se não conseguiram destruir a imagem de Lula, precisam inviabilizá-lo politicamentecom a tentativa de legitimação do encarceramento provisório daquele que, como Getúlio Vargas, foi (positiva ou negativamente) rotulado de “pai dos pobres”.

Em síntese: consciente ou inconscientemente, ser a favor da recente prisão de Lula é também ser a favor da punição de miseráveis inocentes. Daí, de duas uma: ou o cidadão se posiciona pelo lumiar ou pelo apagamento da democracia. Se enfrentar o crepúsculo, deve se posicionar por Lula livre!

* Adrian Barbosa e Silva é doutorando e mestre em Direito, com ênfase em Intervenção Penal, Segurança Pública e Direitos Humanos, pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia (ICPC). É também professor do Centro Universitário do Pará (CESUPA) e da Faculdade Estácio do Pará (FAP), coordenador do Grupo Cabano de Criminologia e coordenador Regional do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP)

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