Conjunturando

O “jeitinho” contra Favreto

Rápido consenso contra o desembargador do TRF4 representa incapacidade de respeitar direitos no Brasil

Laurita Vaz falou em decisão 'teratológica'; Raquel Dodge pediu investigação por 'prevaricação'
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Na sucessão de eventos envolvendo o habeas corpus pleiteado em favor do ex-presidente Lula pelos deputados Wadih Damous, Paulo Teixeira e Paulo Pimenta, formou-se um rápido e perigoso consenso contra Rogério Favreto, o desembargador do Tribunal Federal da 4ª Região (TRF4) que, no plantão, concedeu a ordem e determinou a soltura de Lula.

Jornais e seus “especialistas” não se cansaram de dizer que Favreto seria “incompetente” para apreciar o pedido, eis que a principal questão relacionada à prisão do ex-presidente (a possibilidade de início de cumprimento de pena privativa de liberdade após decisão em segunda instância) “já havia sido decidida pelo TRF, pelo STJ e pelo STF”.

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Laurita Vaz, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), se disse, por isso mesmo, “perplexa” com a decisão “teratológica” proferida por Favreto. E Raquel Dodge, procuradora-geral da República, pediu que Favreto seja aposentado compulsoriamente e investigado pelo crime de “prevaricação”, já que teria agido “por sentimento pessoal”, pretendendo “desconstituir ordem judicial válida, emanada de juízo competente (a 8ª Turma do TRF-4) e confirmada mais de uma vez pelos tribunais superiores”. 

Se, todavia, o Direito ainda importar, é forçoso reconhecer que ele está ao lado de Favreto. 

Habeas corpus é a classe processual na qual o juiz tem o maior grau de liberdade. Observando constrangimento ilegal, pode conceder a ordem até mesmo de ofício. Quem lê a decisão de Favreto percebe que ele identificou constrangimento ilegal na inércia da juíza da execução, que até a data do pleito de habeas corpus, não havia apreciado pedido de Lula para poder dar entrevistas e participar de debates, na condição de pré-candidato à presidência da República. 

Portanto:

1. Nada havia de “teratológico” em sua decisão (porque não tratava de prisão após condenação de segunda instância);

2. Tampouco essa decisão contradizia súmula do CNJ que impede a reapreciação, em plantão, de questão já decidida (porque o constrangimento ilegal decorria exatamente de uma não-decisão);

3. É sem nenhuma procedência a pretensão do MPF de que a única instância competente para conhecer Habeas Corpus em favor de Lula seja o STJ. Em se tratando de um constrangimento ilegal provocado por omissão da juíza de execução, inegável que a competência é do TRF4; e

4. A questão sobre a pertinência de se conceder o Habeas Corpus em plantão podia ser levantada tanto contra como a favor de Favreto. Se a pré-candidatura de Lula à presidência da República não é um fato novo (é “notório”, disseram Gebran, Thompson Flores, Vaz e Dodge), não seria o caso de Favreto deixar a decisão do Habeas Corpus para o juiz natural, que assumiria o caso na segunda-feira? Digamos que sim. Mas ao se defrontar com uma ilegalidade (a não-decisão da juíza, não obstante a “notória” pré-candidatura), Favreto não poderia ou deveria agir? A resposta também deveria ser “sim”.

Isso conduz ao mérito do Habeas Corpus, o qual envolve questão da maior envergadura constitucional: em que medida pode o Estado restringir direitos políticos de condenados criminalmente?

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O texto da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) dá a resposta, determinando o seguinte: “Art. 15 – É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (…) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”. 

No caso de Lula, apesar de condenado, ainda assim ele mantém seus direitos políticos (de votar e ser votado). Isso porque a sentença (que, entre outras coisas, teria o efeito de suspender tais direitos), ainda não transitou em julgado. 

Portanto, se Lula é “notoriamente” um pré-candidato à presidência da República, o Estado deveria respeitar essa condição e se abster de qualquer ato que a prejudicasse. Tal imperativo decorre não de tradições jurídicas “bolivarianas”, e sim do liberalismo do século XVIII.

Mas – muitos tratarão de perguntar – pode alguém ser candidato estando preso?

Quanto a isso, cabe ter em mente que Lula só está preso porque: 

1. Em 2016, em meio ao contexto da lava jato, o STF modificou sua jurisprudência em relação à possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado, decidindo contra a letra da Constituição e nova dicção do Código de Processo Penal; e

2. No julgamento de Habeas Corpus pleiteado em favor de Lula no STF, Fachin e Carmen Lúcia manobraram para manter tal “status quo”, sabendo que a composição do Tribunal, alterada em relação a 2016, já não mais confirmaria aquela mudança de interpretação.

Se o STF tivesse honrado o que está literalmente escrito na CF/1988 – ou seja, o fato de que não se pode, como regra, começar a cumprir pena privativa de liberdade até o trânsito em julgado -, não haveria o problema com o qual o desembargador plantonista Favreto teve de se defrontar. O ex-presidente poderia fazer sua campanha mesmo condenado, e caberia ao eleitorado decidir se ele merece ou não se tornar novamente o presidente. A mudança na jurisprudência da Suprema Corte gerou grave inconsistência sistêmica, que o habeas corpus ajuizado em favor de Lula apenas fez expor.

E não foi por falta de aviso. Na votação do Habeas Corpus de Lula pelo STF, juízes experientes, como Marco Aurelio e Celso de Mello, insistiram quanto ao fato de que o requisito do “trânsito em julgado” para a formação de culpa tinha várias outras implicações no direito, as quais não estavam sendo adequadamente levadas em conta pelo plenário.

Mas e a ficha-limpa, não constitui um impedimento a uma candidatura de Lula?

Em princípio sim, mas já há mais de uma centena de candidatos condenados em segunda instância que obtiveram no TSE autorização para se manterem candidatos. É preciso aguardar que o TSE analise eventuais impugnações à candidatura de Lula com base nessa lei, para só então tê-lo como afastado do pleito. Até lá, ele poderia e pode ser candidato.

Por tudo isso, não há como negar que a decisão de Favreto está juridicamente respaldada. Talvez ele não precisasse determinar a soltura de Lula; poderia, por exemplo, ter concedido um alvará autorizando-o a participar de entrevistas e debates sob o compromisso de se apresentar ao juízo da execução logo depois de tais eventos. Na prática, o resultado disso seria muito parecido com o de uma soltura, pois a Lula não faltaria convites para entrevistas e debates daqui até as eleições.

Mas por que até agora pouca gente ousou colocar tais argumentos sobre a mesa? Por que, mesmo entre os críticos de Moro e de toda a linha de comando da Justiça, parece haver um consenso de que Favreto “errou”?

Há três prováveis razões.

A primeira é a tentativa de legitimar as condutas – essas sim francamente violadoras da lei – que vieram depois. Condutas como a de Moro, que despachou em férias em um processo sobre o qual não tinha jurisdição, obstando o cumprimento de uma decisão legítima oriunda de instância superior.

Ou como a de Gebran que, em contato com Moro, interferiu no andamento de um processo no qual, até o dia seguinte, a competência era inegavelmente do Desembargador plantonista. Ou como a de Thompson Flores, que entrou no circuito para dirimir um conflito de competência inexistente, dando ordens ilegais a Delegado da PF e ao Ministro da Justiça.

A segunda é a intenção de criminalizar Favreto, valendo-se, talvez, do que figuras como Moro e Deltan já admitiram ser um método da “lava jato”: a busca de apoio na opinião pública para as “teses” da operação, em inversão inusitada dos processos de formação de juízos vinculantes.

E a terceira, que precede as demais, mas é reforçada por elas, é nossa incapacidade (atávica?) de respeitar direitos. Empenhados em fazer prevalecer suas convicções morais ou políticas (de “policy”), nossas elites – na mídia, na política, na justiça, e na academia – desconsideram sem qualquer cerimônia as regras estabelecidas na Constituição e nas leis em favor de Lula (isso quando não exaltam o seu descumprimento, como por várias vezes fizeram o TRF4, o STJ, e a PGR em relação a Moro). E é assim que o Brasil segue sendo o país do “jeitinho”; não apesar de tais “lava jatistas”, mas em larga medida por causa deles.

*Fabio de Sá e Silva é professor-assistente de Estudos Internacionais e professor Wick Cary de Estudos Brasileiros da Universidade de Oklahoma (EUA)

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