Conjunturando

Manuela D´Ávila e o manterrupting na política

Interrupções durante fala afetam desproporcionalmente mais mulheres, como visto em entrevista com a pré-candidata ao programa Roda Viva

'Interrupções dos entrevistadores do Roda Viva tiveram uma clara intenção de desestabilizar a debatedora'
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No ultimo 25 de junho a pré-candidata a presidência da república Manuela D’ávila do PCdoB participou do programa Roda Vida, na TV Cultura. A entrevista com Manuela, diferentemente das outras entrevistas feitas com os pré-candidatos, foi uma aula de manterrupting onde a entrevistada chegou a ser interrompida 62 vezes durante o programa.

Por todos os entrevistadores. O manterrupting é uma expressão dada ao comportamento de homens interrompendo mulheres durante conversas, palestras, entrevistas, etc.

Provavelmente não foi a primeira e nem será a última vez que Manuela ou qualquer mulher, na política ou não, será interrompida. Em um clássico estudo sobre o tema, foram analisados três tipos de conversa: entre homens e homens, outra entre mulheres e mulheres e uma conversa entre homens e mulheres.

Nos grupos de conversa entre os mesmos sexos houve uma média de 7 interrupções. Já no grupo de conversa entre mulheres e homens houve um total de 48 interrupções, 46 delas feitas por homens.[1] O comportamento de interromper mulheres é definitivamente um padrão e torna-se mais preocupante quando ocorre em espaços de disputa públicas de ideias, como a política.

Por exemplo, durante as eleições presidenciais americanas, Hillary Clinton em um dos debates presidenciais foi interrompida 51 vezes por Donald Trump enquanto ela o interrompeu 17 vezes. Apesar de homens também serem interrompidos em conversas, há uma clara disparidade na quantidade de vezes em que as falas das mulheres são interrompidas quando comparado a quantidade de vezes em que homens são interrompidos, por homens ou mulheres.

Tanto as interrupções de Trump nos debates, quanto as interrupções dos entrevistadores do Roda Viva tiveram uma clara intenção de desestabilizar a debatedora, seja a intenção estrategicamente pensada ou não.

Apesar do programa não ter emitido nenhuma nota ou comentário sobre as acusações de machismo durante a entrevista, boa parte dos entrevistadores utilizaram seus canais pessoais para responder as acusações. Todos eles negaram que tenha havido qualquer tipo de machismo e afirmaram que entrevistas precisam ser interruptivas, pois se de outro modo fosse seriam palanques para políticos e não uma entrevista.

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Um dos debatedores afirmou ainda que mulher pré-candidata não pode exigir um tratamento diferenciado de outros pré-candidatos. No entanto, entrevistas de outros pré-candidatos no mesmo programa tiveram números muito menores de interrupções.

A entrevista de D’ávila demonstra o quanto a política ainda é um ambiente hostil para as mulheres. A Política como exemplo da esfera pública, é um espaço dominado por homens e pela perspectiva masculina do que é política e como fazer política.

Isso transparece nos números de mulheres ocupando cargos políticos no Brasil: apenas 10% do Congresso Nacional é composto por mulheres e entre os 27 estados e DF apenas um estado brasileiro elegeu uma Governadora mulher em 2015. A política tradicional se perpetua sendo um espaço repelente às mulheres por entender que há somente uma maneira de fazer política. Essa maneira de fazer política tem características tradicionalmente relacionas ao gênero masculino.

Para além disso, mulheres expoentes na política brasileira são constantemente questionadas por suas atitudes e comportamento que vão muito além de seus trabalhos na política. A trajetória de Manuela na política é um excelente exemplo que mulheres precisam enfrentar muito mais do que eleições para permanecerem na política.

Embora tenha iniciado a vida política no movimento estudantil, ter sido eleita duas vezes a deputada federal mais votada do seu estado, D’ávila teve que lidar constantemente com a denominação de “Musa do Congresso” e a uma atribuição das suas conquistas políticas à sua beleza.  Durante os seus 14 anos na política, foram diversas reportagens sobre seu apelido de musa, sobre seu estado civil e até sobre qual dieta ela estaria fazendo.

Para alguns, as mulheres que queiram ousar adentrar na política precisam estar dispostas a passar por assédios verbais, interrupções, desqualificações e gritos. Aparentemente, não aceitar estes comportamentos seria o mesmo que exigir um tratamento diferenciado às mulheres. É interessante pensar que, para estes, não há possibilidade de fazer política de maneira diferente. 

Uma das vertentes do feminismo, o feminismo da diferença, afirma que mulheres e homens falam em linguagens diferentes. No entanto, a voz das mulheres foi silenciada devido a existência de uma perspectiva masculina privilegiada. A teoria é baseada em uma análise empírica da ética e da moral das mulheres a partir da identificação e reabilitação das qualidades e a perspectiva das mulheres.[2]

Todavia é preciso ir além, pois não há somente uma perspectiva oposta a perspectiva masculina em sociedades tão diversas como a nossa. Não há somente uma outra maneira de fazer política. Há maneiras. Há perspectivas. A política baseada no assédio, na desqualificação ou na desconsideração da opinião do outro não é democrática.

É uma política privilegiada e não para todos e todas. Tornar a política um ambiente mais democrático e menos hostil para mulheres, negros e negras, LGBTI não requer um tratamento diferenciado, mas uma nova política. Entretanto, é através da ousadia de mulheres como Manuela D’ávila, que insistem em permanecer na política, que será possível mudar a política.

Por fim, insistir no status quo da política é jogar um jogo que tem dono. É necessário recriar as regras do jogo, a partir de novas perspectivas. É preciso democratizar a política, diversificar os atores e atrizes, dar espaço para outros ou outras. Tem muito mais do que manterrupting para superarmos. Mas seria bom se conseguíssemos terminar uma frase sem interrupções.  


[1] Zimmerman, D. H., and West, C., (1975) Sex roles, interruptions and silences in conversation Language and sex: Difference and dominance. pp: 105- 129. Stanford, CA: Stanford University Press.

[2] Carol Gilligan. In a Different Voice: Psychological Theory and Women’s Development (1993).

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