Conjunturando

O abre-alas da esperança

Desta vez, o Brasil não escondeu suas mazelas durante o Carnaval. Preferiu expo-las

A festa acabou. E agora?
Apoie Siga-nos no

Passado o Carnaval, o ano começa pegando fogo e repleto de polêmicas geradas na festa mais popular do País. As críticas políticas – superficiais e profundas – estavam escancaradas nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Nos blocos de rua, que crescem de forma estrondosa em várias cidades, fantasias geram controvérsias pelos mais loucos e diversos. Vejamos o que o Carnaval nos deixou, além da ressaca.  

O Paraíso da Tuiuti e a Beija-flor, segundo e primeiro lugar no Carnaval do Rio em 2018, trouxeram enredos com críticas sociais e políticas, com as manchetes de jornais do último ano desfilando na avenida. 

As escolas de samba carioca sempre trazem momentos históricos para os enredos, de Cabral a imigrantes europeus, juntamente com temas esdrúxulos (bacalhau e iogurte, por exemplo!). Neste ano, a mira estava, porém, direcionada para questões políticas contemporâneas, com críticas bastante explicitas, como o vampiro neoliberalista, um dos destaques da Tuiuti vestido de presidente Temer, com notas de dinheiro em volta do pescoço e semblante sinistro e fechado.

Leia também:
Beija-Flor e “os filhos abandonados da pátria que os pariu”
“Não sou escravo de nenhum senhor”: Tuiuti desfila contra o retrocesso
 

Enquanto a Beija-flor seguiu a crítica rasa aos problemas políticos do Brasil, a Tuiuti explorou a escravidão, na sua forma original de negros açoitados, e nas contemporâneas, com trabalhadores em condições degradantes no campo e na cidade.

A Beija-Flor teve como tema os filhos abandonados da pátria e apresentou diversos chavões de crítica política, alguns cheirando a mofo (ou a Veja), como refugiados da seca e o peso dos impostos. Em um carro alegórico, o prédio da Petrobras se abria, mostrando uma favela bem caracterizada, com mulher de biquíni de fita isolante na laje e homens com armas pesadas.

Há que se fazer uma ginástica intelectual para que a corrupção na Petrobras seja responsável pela pobreza urbana, mas para que serve a coerência na Sapucaí?

Pabllo Vittar foi destaque em carro alegórico representando a luta contra intolerância, assim como a rapper sensação de “que tiro foi esse?” Jojô Todynho. Claudia Raia desfilou pela escola e, no fim, disse que o enredo foi “um grito de socorro para tirar o País da lama”.

As críticas aos políticos – de forma generalizada, sem nomes aos bois – seguiu a linha de retratá-los como sanguessugas, ratos de cofres públicos e lobos em pele de cordeiro. Mas, se todo os políticos são ruins, que importância tem o voto?

A Tuiuti trouxe uma crítica mais precisa e sofisticada, e ligou o passado de escravidão aos recentes eventos do impeachment.  A ala “guerreiros da CLT” mostrava carteiras de trabalho em frangalhos em clara alusão às mudanças da legislação trabalhista.

Ganharam destaque os longos silêncios dos comentaristas durante a cobertura da Globo durante o desfile da Tuiuti. Mas eles foram precisos ao resumir o carro alegórico com navio negreiro embaixo e o vampiro Temer em cima, com grandes mãos com fantoches de manifestantes de camiseta CBF e panelas: “um retrato do regime de exploração nos seus mais diversos níveis”. Este carro era precedido pela ala “manifestoches”, os manifestantes vestidos de patos sendo marionetes.

No carnaval de rua no Rio e em São Paulo, o clima político também estava aflorado, como esperado. Em São Paulo o movimento pelo carnaval de rua, que crescera consideravelmente nos últimos anos, atingiu público de 9 milhões nos quatro dias de festa. No pré-carnaval, fim de semana anterior ao próprio, foram 4 milhões e o pós-carnaval também teve diversos blocos pequenos e grandes, fechando com Daniela Mercury

Salvador, meca do carnaval de abadás e camarotes, teve neste ano o primeiro camarote aberto, patrocinado pela Skol. Nas palavras do responsável pela marca, “como o Carnaval vem numa tendência de democratização…as pessoas vão ter uma experiência superbacana, mas sem custos, com shows em uma varanda….com entregas de brindes”.

Assim como há esta tendência dos blocos na capital baiana de “baixar as cordas”, em São Paulo o movimento por lazer em espaços públicos tem ganhado força muito além do Carnaval. O centro da cidade lembrou a efervescência dos tempos áureos de Virada Cultural, com multidões pelas ruas largas e uma atração atrás da outra.

A ocupação de vias e demais espaços públicos traz à tona, porém, diversas mazelas de infraestrutura, como disponibilidade de banheiros e transporte, além do patrocínio de marcas às festas e atrações da cidade. Os problemas estruturais afloram, mas ações paliativas para melhorar a experiência do folião devem ser ano a ano melhoradas, considerando o alto potencial de atração turística e de negócios que traz o Carnaval.

As polêmicas das marchinhas politicamente incorretas não são novidades e neste ano o que ganhou força foram as críticas às fantasias de culturas ou grupos sociais, tais como indígenas e ciganos. Com explicações sérias ou rasas, levantou-se o argumento de que estas fantasias são preconceituosas, reduzem a cultura a poucos elementos estereotipados, e não trazem os reais problemas que estes grupos sofrem.

Homem vestido de mulher, profissões e outras categorias também foram classificadas como politicamente incorretas. Apesar da problematização ser importante, divertida e até mesmo objetivo das fantasias carnavalescas, da forma como colocada cai na crítica superficial e, talvez ainda pior, inútil. Assim como a Beija-Flor, que fala, fala e não diz a que veio, a crítica de “fantasias de cultura” problematiza e não põe o dedo na ferida. No mínimo, foca na superfície sem tocar nos fatores estruturais, acabando por prestar um desserviço.

Além das fantasias e marchinhas contrárias a retrocessos políticos e conservadores em curso, neste carnaval se viu um forte movimento contrário ao assedio – não é não! – e pela liberdade de vestimenta e exibição do corpo, especialmente feminino.

É claro que poderia se pensar que os corpos sempre estiveram a mostra no Carnaval, mas aqui a expressão é distinta. Mulheres com peitos nus estiveram pelas ruas, não como em um desfile de escola de samba para serem objetos decorativos, mas pelas suas próprias vontades de expressar e viver a liberdade.

Curiosamente, essas mulheres causaram desconfortos a muitos que assistiriam empolgados os peitos-nus-decorativos. E o melhor é ver que este movimento vem sendo assimilado, ainda que na marra e de maneira pontual, isto é, em ocasiões e locais específicos.

Estes peitos nus respeitados na rua e o vigor da crítica-arte da Tuiuti, que quase levou o primeiro lugar, dão um pouco de esperança para começar de vez o ano que, diferente do Carnaval, corre o risco de ser um show de horror. Não será nada fácil.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo