Conjunturando

A tragédia econômica venezuelana

Como a crônica dependência do petróleo foi agravada por controles artificiais de câmbio e preços que resultaram em um caso extremo de doença holandesa

A nota de 100 bolívares retirada de circulação em maio de 2017
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Há uma guerra de informações em se tratando da Venezuela. Em parte, isso se deve ao fato do governo ter deixado de publicar estatísticas desde que a crise econômica se agravou. O Instituto Nacional de Estatísticas (INE) não publica dados do Produto Interno Bruto (PIB) desde 2013 e da inflação ao consumidor desde 2015, o que resulta em séries incompletas no site do Banco Mundial.

O Banco Central da Venezuela (BCV) divulga dados relativos às taxas de câmbio oficiais, reservas e taxas de juros e o Fundo Monetário Nacional (FMI) traz estimativas mais recentes de dados macroeconômicos como PIB e inflação ao consumidor[1]. Dada a precariedade das estatísticas disponíveis para os últimos anos, os impactos sociais da atual depressão econômica enfrentada pela Venezuela só serão conhecidos nos próximos anos.

De acordo com dados do Banco Mundial, entre 1961 e 1979, o PIB per capita venezuelano cresceu em média 1,1% ao ano, patamar bastante modesto considerando que o país integra a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e os anos 70 foram marcados pelos choques do petróleo.

Como a maioria dos países latino-americanos, a crise da dívida externa abateu a economia da Venezuela, cujo PIB per capita caiu 22,2% entre 1980 e 1985. Em 1998, o PIB per capita era apenas 1,8% maior do que o de 1960. No fim dos anos 90, enquanto a maioria dos países da América do Sul ostentava índices de um dígito, a inflação aos consumidores foi de 35,8% em 1998, depois de atingir um pico de quase 100% em 1996.

Os índices de desigualdade e pobreza eram tipicamente latino-americanos: em 1998, o índice Gini do país era de 0,489 e 43,9% dos domicílios viviam abaixo da linha de pobreza, sendo 17,1% abaixo da pobreza extrema. Em outras palavras, ao contrário de uma narrativa que tem se tornado bastante comum recentemente, Hugo Chávez se tornou presidente em um país estagnado, de inflação elevada, muito desigual e com elevado índice de pobreza.

Sob a presidência de  Chávez, entre 1999 e 2012, o PIB per capita cresceu em média 1% ao ano, índice próximo àquele obtido durante o boom do petróleo dos anos 60 e 70. Entre 1999 e 2006, a inflação foi de cerca de 20% ao ano, relativamente baixa para os padrões da Venezuela. Nesse período, as desvalorizações do bolívar mantiveram a taxa de câmbio real relativamente estável.

A tentativa frustrada de golpe de Estado em 2002 acarretou profunda recessão. Entre 2002 e 2003, o PIB per capita caiu 18,9%. E no fim de 2003, a pobreza atingia 55,1% da população, sendo um quarto em situação de pobreza extrema.

Politicamente, a saída enfrentada pelo chavismo foi radicalizar as políticas voltadas à redução da pobreza e melhora da distribuição de renda. Devido a essas políticas, em 2012 a pobreza foi reduzida para 21,1% dos domicílios, sendo 6,0% abaixo da pobreza extrema. Os indicadores de desigualdade são ainda melhores para expressar as consequências da radicalização do chavismo.

O índice Gini, que teve leve aumento entre 1998 e 2002, caiu para 0,404 em 2012, nível de países como os Estados Unidos. A parcela da renda recebida pelos 20% mais ricos caiu de 54,1% em 2002 para 44,8% em 2012, enquanto os outros quatro quintos aumentaram sua parcela . A mudança na distribuição de renda é o indicador econômico que melhor sintetiza o aumento da polarização política.

No fim da década passada, o aumento dos preços do petróleo impulsionou a economia venezuelana, aumentando pressões inflacionárias. Para não correr o risco de desacelerar a economia, o BCV passou a recorrer ao câmbio para controle da inflação: entre 2007 e 2009, o dólar ficou congelado em 2,15 bolívares, mesmo com uma inflação de aproximadamente 25% ao ano, resultando em brutal valorização da taxa de câmbio real e, consequentemente, perda de competitividade.

Em 2010 e 2011 o bolívar foi desvalorizado novamente, mas em ritmo insuficiente para contrabalançar a sobrevalorização real da taxa de câmbio. Um reflexo da sobrevalorização cambial foi o aumento da dependência do petróleo, que representou 99% das exportações da Venezuela em 2012, contra 72% em 1998. As colheitas cresceram apenas 6,9% no período, contra 55,7% na América Latina.

Portanto, no fim do governo de Chávez, a economia venezuelana apresentava fortes distorções decorrentes da sobrevalorização cambial, que agravou a crônica dependência do petróleo. Também se formou um mercado paralelo de taxa de câmbio a um preço significativamente superior ao oficial, indicando o descolamento do bolívar dos fundamentos da economia venezuelana.

Nicolás Maduro venceu uma eleição acirrada com o desafio de corrigir os graves desequilíbrios acumulados na economia, conciliando a necessidade premente de desvalorização do bolívar e a redução da inflação. No início de 2013, a moeda foi desvalorizada em 50%, mas, como isso não foi acompanhado de políticas fiscal e monetária contracionistas, a inflação aumentou para 56,2% em 2013. Grosso modo, a inflação anulou o ganho de competitividade acarretado pela desvalorização cambial. O PIB per capita ficou estagnado.

Em 2014, a inflação acelerou para 68,5% e, para evitar uma nova desvalorização cambial, o BCV introduziu um complexo sistema de taxas de câmbio múltiplas, com o dólar cotado entre 6,30 e 50 bolívares, ao mesmo tempo em que entrou em vigor a lei de preços justos, que que criminalizou taxas de lucros superiores a 30%.

Em situações normais, estimar a estrutura de custos e lucros de diferentes setores não seria trivial, mas em um processo inflacionário como o venezuelano essas estimativas se tornam ainda mais imprecisas e arbitrárias. Ao longo do tempo, isso desestimulou a produção de praticamente todos os setores da economia, agravando a dependência do petróleo o tornando o desabastecimento crônico.

A queda no preço do petróleo de 2014 foi o golpe fatal para a combalida economia venezuelana. Mesmo com a taxa de câmbio completamente descolada dos fundamentos, o BCV manteve o dólar cotado a 6,30 bolívares, tendo em vista as eleições legislativas do fim de 2015, quando o chavismo sofreu uma derrota expressiva. A forte sobrevalorização cambial, agravada pela inflação em progressiva elevação, e a queda da produção intensificada pela lei de preços justos aumentaram a dependência das importações, cada vez mais escassas diante da redução da capacidade importadora do país.

Impotente diante da escalada inflacionária (o FMI estima que em 2017 a inflação será de mais de 1.000%), o governo tenta controlar preços, margens de lucros, recorre à expropriação de empresas, o que realimenta a redução da produção e agrava ainda mais a dependência do petróleo. Apesar do regime de três taxas de câmbio oficiais, que variam entre 10 e 3.250 bolívares por dólar, as reservas internacionais continuam a cair e se encontram em menos de 10 bilhões de dólares, menos de 10% da dívida externa do país, e o câmbio paralelo ultrapassou 17 mil bolívares por dólar (30/8/2017)[2], um indício de que o país se encontra próximo de uma hiperinflação.

Muito embora sejam sedutoras teorias conspiratórias (e este autor não nega a importância de atores internacionais), a principal causa da crise econômica da Venezuela é interna e decorre da manipulação irresponsável da taxa de câmbio como mecanismo de controle de preços sem o respaldo das políticas monetária e fiscal, agravando a crônica dependência do petróleo do país. Os controles de preços são uma tentativa desesperada e inócua de adiar ajustes inevitáveis, que provavelmente levarão a uma hiperinflação. Possivelmente, a Venezuela é o caso mais grave de doença holandesa da história.

Entre 2014 e 2017, o FMI estima que o PIB per capita da Venezuela terá caído cerca de 35%, regredindo a um nível menor do que o de 1960. Dificilmente a combinação de uma depressão dessa magnitude e hiperinflação não irá resultar em aumento das desigualdades e da pobreza, que não são medidas desde 2015, quando o índice Gini foi de 0,381 e um terço dos venezuelanos era pobre.

Em magnitude, a queda do PIB venezuelano é similar àquela ocorrida na Grécia a partir da crise de 2008, com a diferença que a Grécia é um país significativamente mais rico e que não enfrenta uma hiperinflação. Regredindo no tempo, para o período do entre guerras, é possível encontrar exemplos mais próximos da crise econômica venezuelana. Embora não se possa ver com clareza quando e como a Venezuela irá se recuperar da crise, é possível ter certeza que deixará cicatrizes profundas na sociedade.

* Bacharel em Economia (Unicamp), bacharel, mestre e doutorando em Direito (USP), Analista do Banco Central do Brasil



[1] A planilha com os dados utilizados e links para as fontes citadas pode ser baixada aqui

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