Conjunturando

A necessária reforma da previdência e a blindagem dos privilégios

A reforma perdeu seus aspectos mais regressivos, mas se omite quanto a privilégios protegidos pelo direito adquirido

Temer discute reforma da Previdência com CNM e prefeitos. Foto: Marcos Corrêa/PR
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A Constituição de 1988 ampliou consideravelmente o alcance da seguridade social, instituindo benefícios de um salário mínimo mensal sem a necessidade de contribuições previdenciárias para trabalhadores rurais (art. 201, §7º, II) e idosos de baixa renda (art. 203, V), bem como a universalidade da cobertura de saúde (art. 196). No primeiro governo Lula, a emenda constitucional 47/2005 criou a possibilidade da instituição de sistema especial de inclusão previdenciária para trabalhadores de baixa renda ou sem renda devido à dedicação ao trabalho doméstico, o que resultou na possibilidade de trabalhadores contribuírem com 11% ou 5% do salário mínimo para obterem aposentadoria por idade.

A combinação de um sistema especial de inclusão previdenciária com a expansão do emprego formal resultou em aumento da cobertura previdenciária da população ocupada de 16 a 64 anos, de 63,4%, em 2004, para 72,9%, em 2014, segundo estudo publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)[1], que também constatou que, em 2014, 91,3% dos idosos de 65 anos recebia benefícios previdenciários.

A ampliação do acesso à saúde pública foi decisiva para a queda da mortalidade em praticamente todas as faixas etárias. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[2], entre 1980 e 2015, a expectativa de vida ao nascer aumentou de 62,5 para 75,5 anos, enquanto a expectativa de sobrevida daqueles com 65 anos aumentou de 13,1 para 18,4 anos. A ampliação da cobertura de saúde também contribuiu para a abrupta redução da taxa de fecundidade, que, segundo o IBGE[3], foi de 3,8 filhos por mulher em 1980 para menos de 2,1 filhos por mulher (taxa de reposição populacional) na década passada e atualmente se encontra em 1,7 filho por mulher, com projeção de queda para 1,5 até 2030.

Para se ter uma ideia do que isso representa, nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[4], grupo que reúne os países desenvolvidos e algumas economias emergentes de renda per capita maior que a do Brasil, em 2015 a expectativa de sobrevida era de 18,3 anos para homens e 21,3 anos para mulheres. A fecundidade, que foi de 2,05 filhos por mulher em 1980, caiu para 1,71 filhos por mulher em 2015, similar à brasileira. Segundo a OCDE, em 2015 a proporção entre idosos e a população de 20 a 64 anos foi de 13,0% no Brasil, quase metade dos 27,9% nos países pertencentes à OCDE. Em 2075, os idosos passariam a representar 62,3% da população de 20 a 64 anos no Brasil e 58,3% nos países membros da OCDE. Há, portanto, uma grave questão demográfica para a previdência pública brasileira que independe da discussão sobre os números na atualidade.

Em estudo sobre indicadores sociais de 2016[5], o IBGE utilizou a linha de pobreza do Banco Mundial para a América Latina, de 5,50 dólares por dia, correspondendo a uma renda domiciliar per capita de R$ 387 por mês, e estimou que 25,4% da população brasileira vivia em situação de pobreza naquele ano. Entre as pessoas com 60 anos ou mais, esse índice era de 7,5%, o menor entre os grupos etários, contrastando com 42,4% de crianças e adolescentes de até 14 anos vivendo em situação de pobreza. Entre mães solteiras, esse índice era de 55,6% e entre mães solteiras negras, 64,0%. O mercado de trabalho tampouco é desfavorável aos mais velhos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, no 3º trimestre de 2017 a taxa de desemprego entre as pessoas com 60 anos ou mais era de 4,3%, um terço da taxa nacional, de 12,4%, e um sexto da taxa de desemprego de jovens de 18 a 24 anos, de 24,5%[6].

De acordo com estudo publicado pelo IPEA[7], aposentadorias (contributivas ou não) e pensões representam 20% de todos os rendimentos, contribuindo marginalmente para aumento da desigualdade. As aposentadorias e pensões da iniciativa privada contribuem levemente para a redução da desigualdade devido ao piso de um salário mínimo, aposentadorias rurais e um teto para os benefícios, atualmente de pouco mais de R$ 5 mil. Os benefícios assistenciais para idosos pobres também ajudam a diminuir a desigualdade. Interessante notar que, com exceção do teto para aposentadorias e pensões do setor privado, os fatores que colaboram para a queda da desigualdade foram criados pela Constituição de 88.

Já a previdência de servidores públicos contribui fortemente para aumentar a desigualdade, anulando todos os ganhos distributivos dos benefícios pagos pelo Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS). Isso ocorre porque, ao contrário do que já ocorria na iniciativa privada, o estabelecimento de um teto de aposentadorias e pensões para servidores públicos foi uma possibilidade criada apenas em 2003, pela Emenda Constitucional 41. Ainda assim, a mudança atinge apenas servidores civis admitidos após a instituição dos regimes de previdência complementar. A União criou a previdência complementar dos seus servidores civis em 2012 e diversos entes federativos, a exemplo do Município de São Paulo, ainda não regulamentaram seus regimes próprios de previdência complementar.

Os trabalhadores da iniciativa privada podem se aposentar por tempo de contribuição, 30 anos para mulheres e 35 anos para homens, ou por idade, 60 anos para mulheres e 65 anos para homens, cumulados com no mínimo 15 anos de contribuição. Os segurados individuais que contribuem para os regimes especiais para pessoas de baixa renda possuem direito apenas à aposentadoria por idade. Segundo o INSS, em 2015 a idade média na concessão de aposentadorias era de 60,8 anos para aposentadorias por idade e 54,7 para aposentadorias por tempo de serviço.

Um argumento comum em defesa das aposentadorias por tempo de contribuição é que favorecem os mais pobres, que necessitam trabalhar mais cedo. Entretanto, se deve ter em mente que as pessoas mais pobres estão mais sujeitas à informalidade. De fato, um estudo publicado pelo IPEA[8] contatou que, excluindo-se aposentados rurais, 59,6% dos aposentados precoces (mulheres na faixa de 46 a 54 anos e homens na faixa de 50 a 59 anos) pertencia aos 30% mais ricos da população quando se considera a renda familiar mensal per capita.

Em 2016, a União despendeu R$ 667,7 bilhões, 53,4% das despesas primárias ou 10,7% do Produto Interno Bruto (PIB), com benefícios do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) urbano e rural, Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e deficientes pobres e aposentadorias e pensões do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) de servidores civis e militares da União[9].

Nos entes subnacionais a situação tende a ser mais precária devido à aposentadoria antecipada de professores e ausência de idade mínima para aposentadoria de militares. Em 2016 o déficit dos regimes previdenciários dos estados e do Distrito Federal foi de R$ 60,9 bilhões (1,0% do PIB). Alguns estados gastam mais com servidores inativos que com servidores na ativa. Devido à transição demográfica, as despesas previdenciárias tendem a aumentar ao longo do tempo, tanto em termos absolutos, como em proporção do PIB.

O texto original da reforma da previdência estipulava como requisitos para aposentadoria o tempo mínimo de 25 anos de contribuição cumulado com idade mínima de 65 anos para aposentadoria de trabalhadores urbanos, rurais e servidores públicos civis, homens e mulheres. O cálculo dos benefícios seria feito pela média dos salários de contribuições, sendo aplicado um redutor de 1% por ano que falta para atingir 49 anos. A idade mínima seria vinculada à expectativa de sobrevida aos 65 anos, atingindo 67 anos em meados deste século. O BPC seria desvinculado do salário mínimo e concedido a partir dos 70 anos. Seriam vedados tanto o acúmulo de aposentadorias e pensões, como o acúmulo de aposentadorias do regime geral da previdência social e dos regimes próprios. Os servidores públicos admitidos até 2003 somente manteriam a instituição de um regime de previdência complementar para vencimentos acima do teto do RGPS e a instituição de regimes de previdência complementar seria obrigatória para os entes subnacionais que não a tivessem feito.

Essa proposta foi criticada por prejudicar diretamente trabalhadores rurais e idosos pobres, bem como não levar em conta que os trabalhadores mais vulneráveis ao desemprego e à informalidade, como as mulheres, teriam dificuldades em atingir o tempo mínimo de 25 anos de contribuição para a previdência. Por essa razão, o governo foi obrigado a recuar e manteve as regras vigentes para trabalhadores rurais e idosos pobres, bem como o tempo mínimo de contribuição de 15 anos. A idade mínima foi mantida em 65 anos para homens e reduzida para 62 anos para mulheres. A concessão foi inadequada, pois o ideal seria uma redução no tempo mínimo de contribuição, o que beneficiaria sobretudo as mulheres mais sujeitas à informalidade. O tempo de contribuição para aposentadoria integral foi reduzido para 40 anos e o acúmulo de benefícios seria permitido até o limite de dois salários mínimos – em outubro de 2017, 84,7% dos benefícios do INSS eram de até dois salários mínimos.

Em outras palavras, ao longo de 2017 a pressão política eliminou os aspectos mais regressivos da reforma da previdência, mantendo sua espinha dorsal: a instituição de uma idade mínima de aposentadoria para todos os trabalhadores da iniciativa privada e o aumento da idade mínima para aposentadoria de servidores civis, de 60 para 65 anos em se tratando de homens e de 55 para 62 anos para mulheres. Vale lembrar que para os trabalhadores mais pobres, que dificilmente conseguem atingir tempo de contribuição de 30 a 35 anos, a idade mínima existe há décadas.

A transição para as novas regras também se tornou mais suave, em até 20 anos. É neste último aspecto, porém, que reside a principal medida regressiva das emendas ao texto original: os servidores públicos civis admitidos até 2003 não precisarão trabalhar até os 65 anos para manter a integralidade, ou seja, a aposentadoria com o último vencimento da carreira e reajustes atrelados aos servidores da ativa. Em geral, bastará trabalhar alguns meses a mais para garantir esse privilégio.

Ironicamente, a reforma da previdência é problemática pelos interesses que ela não se propõe a enfrentar. A começar pelos militares, que, diferentemente dos servidores civis, ainda não têm idade mínima para ir para a reserva, não estão sujeitos ao teto do RGPS e contribuem proporcionalmente menos que servidores civis para custear sua previdência. Em 2016, a União arrecadou R$ 2,9 bilhões com o regime previdenciário dos militares e gastou R$ 37,0 bilhões com aposentadorias e pensões. O déficit da previdência dos militares representou 44% do déficit previdenciário de servidores da União, com a diferença que, devido à ausência de idade mínima e teto de benefícios, o desequilíbrio tende a se aplicar ao longo do tempo em uma trajetória explosiva. No início do ano, a justificativa do governo era que, por não terem previdência disciplinada na Constituição, seria enviado projeto de lei complementar alterando a previdência dos militares. Isso nunca ocorreu.

Outro problema que a reforma da previdência nunca se propôs a rediscutir é o dos benefícios concedidos com regras muito generosas no passado. Nesse sentido, há convergência com uma interpretação jurídica que se encontra enraizada em decorrência do patrimonialismo do Estado brasileiro: a noção de direito adquirido, cláusula pétrea da Constituição de 88. Ao longo de décadas, o Estado brasileiro concedeu privilégios para algumas categorias de servidores públicos e hoje todo tipo de absurdo do passado está albergado pelo respeito ao direito adquirido, roupagem jurídica elegante para a boa e velha manutenção do status quo. Há um bom precedente que poderia servir de inspiração para se rediscutir esses “direitos adquiridos”: a reforma da previdência dos servidores públicos de 2003 determinou a cobrança de contribuição previdenciária de 11% sobre o valor dos benefícios que excedessem o teto do RGPS. Porém, o ideal seria estipular alíquotas progressivas e mais elevadas para tributar essas rendas mais altas que tornam a previdência pública brasileira concentradora de renda.

É compreensível que em sua versão inicial a reforma da previdência tenha gerado ampla reação negativa. Entretanto, a proposta atual é razoável, pois preserva as regras mais sensíveis aos mais pobres, como os regimes especiais, a aposentadoria rural e o BPC. A introdução de uma idade mínima, espinha dorsal da reforma, já é uma realidade para a maioria dos brasileiros e, diante da transição demográfica que vivemos, é essencial para assegurar que a ampla cobertura previdenciária conquistada em decorrência da Constituição de 88 não inviabilize a solidez fiscal do Estado brasileiro. Por outro lado, é forçoso reconhecer que a atual reforma da previdência nunca se propôs a diminuir distorções já existentes e, no que tange à previdência dos militares, o prometido projeto de lei sequer foi apresentado.

*Rafael Bianchini Abreu Paiva é Bacharel em Economia (Unicamp), Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito (USP) e Analista do Banco Central do Brasil


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