Conjunturando

A condenação de Lula: a Justiça contra a democracia

O TRF-4 expressamente reconheceu que as decisões da Lava Jato são “inéditas” e não precisam respeitar as regras ordinárias da Constituição

Lula em Porto Alegre / Foto: Ricardo Stuckert
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Todo juiz em uma democracia deveria estar ciente de um paradoxo que inevitavelmente circunda a sua atividade: por um lado, ao abraçar a magistratura, uma pessoa se investe de um poder que não é concedido a ninguém mais em uma sociedade democrática; aos juízes, e àqueles que lhe são subordinados, é licitamente concedido o direito de exercer a coerção e a força em uma democracia.

Por outro lado, apesar de ser reconhecido como autorizado a exercer a violência, o juiz deve conviver com a inevitável dúvida sobre sua legitimidade.

Contra o judiciário pesa, invariavelmente, um ônus de argumentação, uma presunção de ilegitimidade de sua atuação, que só pode ser contornada de uma única maneira: por meio de uma atitude incondicional de respeito à legalidade e de uma justificação adequada para suas decisões.

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É na lei que a decisão – qualquer decisão de qualquer juiz – se justifica. A legitimidade de uma decisão judicial não é atribuída ou concedida, mas conquistada por um exercício fiel e disciplinado da função jurisdicional que lhe foi confiada. Para se exercer essa função é necessária, antes de tudo, uma atitude de submissão, de vinculação à lei e de respeito às partes e aos direitos que cada uma delas titulariza no processo.

O juiz Sérgio Moro provavelmente sabe dessas condicionantes sobre a autoridade judicial; sabe que a jurisdição só é legitimamente exercida quando ela convive com a crítica, quando ela se apresenta como uma palavra falível decorrente de um juízo descomprometido e imparcial, uma busca pela verdade, e não pela vingança.

A Operação Lava-Jato é uma exitosa tentativa de quebrar essas barreiras legais e substituir essa forma de legitimação judicial, típica do Estado de Direito, por uma racionalidade alternativa. Ela foi construída partindo-se do princípio de que qualquer crítica aos métodos, às interpretações, aos juízos ou às condenações da Lava-Jato é uma defesa da corrupção; sob a lógica de que as partes processuais não são sujeitos autônomos sobre os quais é necessário realizar um juízo imparcial, mas inimigos públicos que precisam ser derrotados.

Criticar a Lava-Jato, nesse contexto, é colocar-se sob a condição de cúmplice de um crime de lesa-pátria. É tornar-se parte da escória da sociedade, do grupo dos “corruptos”, dos “petralhas”, dos “esquerdopatas” que não têm moral e não precisam de qualquer julgamento para serem condenados.

Cada crítica a uma decisão de Moro é recebida pelo magistrado como uma ofensa pessoal e reverberada pela mídia fascista como uma crítica à justiça, às instituições, à democracia.

Melhor do que ninguém, Moro soube jogar com uma das armas mais poderosas do nosso tempo: o corporativismo da Justiça, do MP e da Polícia Federal. Cada decisão individual de Moro era vendida como a interpretação da Justiça Federal, e cada crítica uma ofensa à independência da Magistratura.

Com a manipulação do corporativismo, Moro transformou qualquer crítica à combinação promíscua entre “delação premiada” e “prisão cautelar”, qualquer reserva à “condução coercitiva”, qualquer forma de garantismo ou presunção de inocência, numa ofensa pessoal a toda a magistratura.

Cada vez que se violava a legalidade vinha uma nota oficial da AJUFES abominando qualquer forma de crítica à Lava-Jato e ressaltando como os juízes federais do Brasil “são todos Moro”, não toleram qualquer crítica a esse magistrado.

Assim toda ilegalidade foi chancelada, avalizada, autorizada pela imprensa, pela Justiça Federal e pelo próprio Supremo Tribunal Federal. O mais grave ato em todo o processo de impeachment da presidenta da República eleita não proveio do Congresso Nacional.

Proveio de Curitiba, quando Moro criminosamente divulga áudios de conversas privadas entre Lula e sua mulher, seus advogados e a Presidenta da República. Utiliza-se uma conversa privada fora de contexto e irrelevante para fornecer o contexto político e midiático para a consolidação do impeachment.

Moro se torna então o principal interessado na condenação de Lula. Passa a ser um jogo do tipo “tudo ou nada”, um duelo pessoal onde só pode restar um.

Diante de seus seguidores entorpecidos pelo ódio, o juiz de Curitiba não pode absolver Lula sem condenar a si próprio.

A nenhum de seus juízos ou pseudo-interpretações do direito deve ser dado qualquer valor. Se a sentença é um mar de nulidades, uma montanha de falácias, um infinito de juízos desacompanhados de provas, como praticamente toda a intelectualidade brasileira reconhece, sejam os partidários ou até os adversários de Lula, é porque a estratégia de manipulação deu certo.

Em um acórdão de inspiração autoritária, o TRF-4 expressamente reconheceu que as decisões da Lava-Jato são “inéditas” e não precisam respeitar as regras ordinárias da constituição e da lei que definem o conteúdo do devido processo legal.

Nas próximas horas, o Brasil tem a chance de reverter esse processo social corrosivo de destruição completa das instituições políticas e jurídicas que garantem o Estado de Direito em nosso país, um processo que deveria ter sido abortado no julgamento do impeachment, exigindo-se a prática de um crime para uma condenação.

É preciso repetir o que já foi incansavelmente dito: “não precisamos de heróis, nem muito menos de vingadores; mas de juízes e imparciais”.

*Thomas Bustamante é doutor em Direito (PUC/RJ) e Mestre (UERJ), com período de investigação na University of Edinburgh, Reino Unido. É Professor de Filosofia do Direito da UFMG, onde é membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito. Autor da obra Teoria do precedente judicial: a justificação e aplicação de regras jurisprudenciais.

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