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Opinião: Recife coloca em risco o futuro das áreas protegidas

O retrocesso recifense terá repercussão e reverberará nos processos de revisão dos planos diretores

Foto: Reprodução/TV Globo
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Uma parcela significativa da população do País construiu com suas próprias mãos a sua moradia, ou seja, sem qualquer apoio ou intermediação estatal. Isso significa que a solução habitacional de muitos brasileiros foi – e continua sendo – implantada “na marra”, conformando assentamentos populares. Muitos desses territórios surgiram há décadas, em terrenos que não eram valorizados pelo mercado imobiliário, em áreas com restrições ambientais, muitos delas alagáveis ou íngremes. Foram “aterradas” ou “escaladas” pelos que necessitavam construir suas casas. Os anos passaram e, com o crescimento das cidades, essas localidades, antes “periféricas”, passaram a estar na mira do mercado imobiliário.

Visando proteger esses territórios e garantir a permanência dos seus moradores, surgiu no Recife, na primeira metade da década de 1980, o instrumento da Zona (ou Área) Especial de Interesse Social (ZEIS). Esse instrumento foi um marco histórico relativo ao reconhecimento da diversidade de ocupações existentes nas cidades e à possibilidade de construir uma legalidade para essas ocupações tão presentes em nossas cidades. O instrumento também responde aos preceitos constitucionais relativos ao direito à cidade e ao direito à moradia para populações de baixa renda, inclusive, em lugares centrais e valorizados. Para as ZEIS, são estabelecidas restrições urbanísticas que buscam impedir a sua apropriação pelo mercado imobiliário, sendo a mais importante delas a proibição do remembramento de imóveis, ou seja, de reunificação de terrenos que resultem em lote com área que permita a promoção de empreendimento com padrão diferente daquele dessas Zonas.

As Zonas Especiais de Interesse Social, ou Áreas Especiais de Interesse Social, foram disseminadas para todo o país como um instrumento jurídico-urbanístico que reconhece que os assentamentos populares (favelas) fazem parte da cidade e que esses territórios devem ser protegidos e reservados para a moradia popular. Hoje, 1.811 municípios – dos 5.568 municípios brasileiros – previram o instrumento nos seus respectivos planos diretores, dentre eles, todos os municípios com mais de 100.000 habitantes (IBGE, 2018). Com isso, o poder público passou a ter obrigação de urbanizar e regularizar essas áreas para garantir a permanência dos seus moradores e também passou a ter o dever de adotar medidas urbanísticas e jurídicas capazes de garantir a continuidade dessa destinação.

O Golpe

O novo Plano Diretor (PD) do Recife, Lei nº 18.770/2020, foi aprovado no apagar das luzes de 2020 num processo extremamente contestado. Um projeto de lei com 200 artigos que recebeu mais de 586 emendas. Metade dessas emendas foi analisada em duas reuniões virtuais da Comissão Especial da Câmara de Vereadores, criada para esta finalidade . Some-se a isso a aprovação do relatório favorável ao Projeto pela Comissão de Constituição e Justiça em reunião iniciada às 6h30min da manhã, com duração de 12 minutos.

Além do processo legislativo contestado, o seu conteúdo é tributário de um processo de elaboração eivado de críticas e denúncias, principalmente pela visão financeirizada da cidade. Tal visão representa uma ameaça para as ZEIS, pois o novo Plano Diretor do Recife estabelece para essas zonas especiais tratamento igual ao de outras zonas da cidade onde se pretende incrementar o mercado imobiliário. Isso ocorre porque foi estabelecido para as ZEIS coeficiente de aproveitamento – índice que multiplicado pela área do terreno resulta na área de construção permitida em cada lote – maior que os determinados para outras zonas definidas pelo zoneamento do PD. Outra ameaça é permitir que os imóveis situados nas ZEIS e lindeiros aos corredores de transportes adotem os parâmetros das Zonas de Reestruturação Urbana, exatamente aquelas que mais se quer dinamizar com o incremento construtivo. O instrumento da ZEIS foi criado para isso?

Associada às mudanças trazidas pelo Plano Diretor estão as promovidas pela Lei nº 18.772/2020, também aprovada no apagar das luzes de 2020, com inúmeras e gritantes irregulares. Uma delas foi o envio do Projeto de Lei (PL) para a Câmara de Vereadores fora do prazo legal para que fosse apreciado ainda no exercício de 2020. Mesmo com todas as irregularidades, o PL foi aprovado pela imensa maioria dos vereadores que integravam a bancada governista. Essa outra lei feriu o instrumento da ZEIS de morte, ao por fim à vedação do remembramento ou à reunificação de terrenos – sem limitar o tamanho do lote resultante – mecanismo que inibiu que esses territórios fossem apropriados pelo mercado imobiliário. Na medida em que essa restrição urbanística é flexibilizada, o princípio das ZEIS é mutilado frente às fragilidades socioeconômicas estruturais a que estão submetidas as populações que nelas habitam. A venda do lote passa a ser uma alternativa de sobrevivência.

Assim, as ZEIS recifenses perderam a efetividade quanto à proteção da permanência de seus moradores. O Plano Diretor do Recife e a Lei no 18.772/20 – ambos publicados no dia 30 de dezembro de 2020 no Diário Oficial do Município – promovem a total distorção do instrumento e liberaram faixas dos territórios reconhecidos como ZEIS para a atuação do mercado imobiliário. A lógica financeirizada do novo Plano Diretor do Recife também avançou sobre outras áreas protegidas. Unidades protegidas e definidas como Áreas de Preservação Permanente (APP) passaram a ter potencial construtivo. As áreas de patrimônio histórico, inclusive as tombadas, idem. Até mesmo a faixa de areia da praia de Boa Viagem passou a ter potencial construtivo. Tudo em consonância com “as boiadas” urbanísticas e ambientais que ocorrem no país inteiro.

O retrocesso recifense certamente terá repercussão nacional e reverberará nos processos – muitos deles em curso – de revisão dos planos diretores municipais. Recife, antes referência nacional no planejamento urbano e na garantia do direito à moradia da população menos favorecida, escancarou a “porteira” e liberou um vasto território para “a boiada passar”. Com o amparo de leis elaboradas “por encomenda”, encravadas em áreas valorizadas, moradias nas ZEIS serão vendidas a baixo custo aos promotores imobiliários.

No final das contas, será que as ZEIS recifenses serviram para reservar/guardar áreas pobres, bem localizadas da cidade, para a sua utilização pelo mercado imobiliário 40 anos depois? A partir dessas alterações legislativas, não existe mais nenhuma restrição que impeça que as moradias populares nas ZEIS sejam demolidas e deem lugar a edifícios residenciais/empresariais direcionados aos segmentos populacionais de mais alta renda. Foi esse o legado da última gestão municipal: uma cidade sem restrição e sem proteção dos territórios especiais e onde o céu é o limite.

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