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Inclusão, bem-estar e direito à cidade: a agenda municipal progressista para 2020

Na Europa, a dita sociedade de bem-estar sucedeu o fascismo que figura historicamente como uma tentativa fracassada de impedi-la

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Sou médico e ao longo da minha vida profissional, além da pediatria, me dediquei à agenda da Saúde Pública. Nesse itinerário tive o privilégio de acompanhar como secretário adjunto da Secretaria Municipal de Saúde de Natal duas gestões: a da doutora Aparecida França em 2003 e a do doutor Cipriano Maia de Vasconcelos em 2013. Essas gestões foram momentos de desenho da rede assistencial do SUS na cidade; a primeira em decorrência da implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) e a segunda do desenho de rede das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Sob a gestão do doutor Ricardo Lagreca (2015), fui incumbido do desenho da Regionalização da Saúde, o que foi feito de forma participativa, juntamente com as Comissões Bipartite Regionais, resultando num documento subscrito por todos os Secretários Municipais de Saúde do estado.

Simultaneamente, tive a oportunidade de acompanhar num dos bairros mais pobres de Natal, Mãe Luiza, uma jornada de lutas iniciada nos anos 1980 que se caracterizou, nos seus primórdios, pelo enfrentamento da agenda da sobrevivência (mortalidade infantil, alfabetização, desratização, moradia, etc) e que, em vinte anos, evoluiu para lutas da agenda da Inclusão Social (esporte, cultura, lazer, dignidade).

Hoje podemos constatar que essa transição se deu por meio do desenho, pela comunidade, de uma “rede local” de Equipamentos Coletivos e de Políticas Públicas (da qual o Estado pouco participou) que pôde, em parte, ser materializada pelo Centro Sócio Pastoral Nossa Senhora da Conceição (uma entidade ligada à Igreja Católica do bairro). Essa rede evoluiu através do tempo em resposta à evolução das necessidades objetivas e subjetivas da própria comunidade.

Bem estar, Inclusão e Direito à Cidade

Convergindo com a ideia de Inclusão Social, o conceito de Direito à Cidade, desenvolvido pelo sociólogo francês Henri Lefebvre em seu livro de 1968 “Le droit à la ville”, é o de um direito de não exclusão das qualidades e benefícios da vida urbana e pela inclusão das populações suburbanas parisienses aos benefícios existentes no centro.

É interessante notar que, diferente desse modelo, as lutas orientadas pelos ditames da sobrevivência e depois pelos da Inclusão Social em Mãe Luíza resultaram numa agenda de direito à cidade focada na busca da atenuação das assimetrias centro/periferia, não pelo viés do acesso ao centro, mas pelo incremento desse direito na própria periferia por meio de uma rede local pelo Direito à Cidade construída de forma participativa em meio à adversidade.

Na Saúde Pública, o desenho da Rede Assistencial está diretamente relacionado a uma população adscrita (uma equipe da ESF para 4.000 pessoas, ou uma UPA de porte III para 200.000), a uma pactuação interfederativa e aos orçamentos disponíveis.

Não há no dimensionamento do acesso à Rede SUS uma lógica centro/periferia, pois busca-se uma acessibilidade territorial. Isso não impede que existam equipamentos “centrais” mas, nesse desenho, eles figuram como referenciais por seu alto custo ou alta complexidade.

A Rede local da Inclusão Social, por outro lado, que materializaria o Direito à Cidade na própria Periferia, respeitando essa lógica territorial, existe, no entanto, apenas como uma ideia.

Diferentemente da Rede SUS, ela não conta com orçamentos públicos, não se baseia em estudos capazes de balizar a implantação de seus equipamentos com base populacional e não se vincula a qualquer pactuação entre os entes da federação.

Atributos da inexistência, ela não existe conceitualmente em parte alguma e vem sendo construída às cegas, como em Mãe Luíza, e em raríssimas outras localidades onde excepcionalmente o povo pôde contar com algum recurso para materializá-la.

Ela decorre da iniciativa pontual de instituições religiosas ou filantrópicas, como também de forma errática por iniciativa pública.

Portanto, seu desenho é incompleto e normalmente está concentrado na especialidade da instituição que tomou a iniciativa, razão porque poderá haver aqui um Ginásio Esportivo, ali uma Casa de Idosos e acolá um Centro Cultural Embora louvável, isso não permite o entendimento de que cada um desses equipamentos pode ser entendido como parte de um todo maior que remete ao Direito à Cidade entendido em sentido integral como resposta às demandas da inclusão social, ou da não exclusão, como diria Lefebvre.

Então, de que é feita essa rede e, sobretudo, quanto ela custaria?

 O que essa rede é? O que ela não é?

Em primeiro lugar, essa rede não é o aperfeiçoamento de redes já existentes como a Rede de Saúde ou a de Educação. O mais que necessário aperfeiçoamento, ou a resistência para que não sejam desmontadas, não compõem a rede de que falamos.

Também não se trata das políticas de emprego e renda que fizeram a alma dos governos populares e aliviaram materialmente o povo enquanto duraram. Essas políticas são macroeconômicas e embora cruciais para a justiça social e a equidade, não respondem aos desafios da Inclusão Social e do direito à cidade, além de não serem de âmbito municipal.

Essa rede que materializa elementos estruturantes do direito à cidade é um processo de dotação das periferias de Equipamentos Coletivos e Políticas Públicas que inexistem (pensemos nos espaços culturais para a juventude em Paraisópolis) devido à ausência de um Poder Público que ali se desobrigou da sua tarefa civilizatória.

Dimensionamento populacional e custos

Para o dimensionamento dos seus dispositivos, a Rede SUS conta com os conhecimentos produzidos pela epidemiologia que tocam à estimativa da demanda em saúde e à da produção dos serviços. Na Saúde, o dimensionamento é um casamento entre necessidades assistenciais e capacidades de oferecer serviços.

Inexistente que é, e ferida pela invisibilidade, a Rede da Inclusão Social não tem ainda um dimensionamento definido. Significa que ela não conta com estimativas de necessidades e ofertas para essa civilidade como a epidemiologia faz para a Saúde. Nenhum cálculo nos acode para informar quantas piscinas públicas seriam necessárias por qualquer agregado populacional, ou quantas escolas de música, ou quantos centros de velório… A única coisa que sabemos é que as periferias comumente não os têm e o Poder Público não cogita disponibilizar.

Entretanto, a falta dessas informações não nos imobilizou na tarefa estratégica de definir esse dimensionamento crucial para o cálculo de viabilidade da universalização desses equipamentos coletivos, da agenda da Inclusão e do Direito à Cidade. Mas isso nos obrigou a projetar esse dimensionamento com as seguintes variáveis fixas provisórias:

  • Um equipamento coletivo para cada 20.000 habitantes;
  • Uma população alvo correspondendo ao terço mais pobre da população total;
  • Uma metodologia participativa para a definição da agenda de equipamentos coletivos em cada comunidade e gestão compartilhada posterior;
  • Uma estimativa de custos do metro quadrado construído de R$2.000,00 para assegurar bons padrões de projeto e execução;
  • Orçamentos suficientes para a construção de um equipamento coletivo com 750 metros quadrados, ou 1,5 milhão de reais por ano por comunidade;
  • Um cardápio de equipamentos coletivos e políticas num leque que vai da Piscina Pública à Casa dia de Idosos aberto a outras ideias das comunidades.

Impacto Orçamentário nos municípios

O orçamento municipal seria impactado para cada capital brasileira com a implementação da Rede da Inclusão Social, considerando as variáveis fixas citadas acima, entre 0,43% para São Paulo e 1,24% para Macapá.

Naturalmente, além da obra, a iniciativa se compõe de políticas, insumos, mobiliário, equipamentos e recursos humanos que agregariam alguns centésimos definitivos a mais a esses custos, que embora baixos, não significam automaticamente uma disponibilidade orçamentária, pois há municípios deficitários e endividados. Além disso, a produção dos espaços urbanos em escalas mais abrangentes não se resolvem apenas com o planejamento local e continuam devendo ser enfrentados. Mesmo assim, considerando o impacto orçamentário médio de 0,58%, a viabilidade orçamentária de implantação da Rede da Inclusão Social é emblemática.

Atenção, a conexão entre a possibilidade material desse salto adiante e o retrocesso que tivemos pode não ser casual. Observe-se que o fascismo precedeu a sociedade de bem-estar na Europa como um último espasmo reacionário. Aqui estamos às suas portas, e talvez isso ajude a explicar a emergência da extrema direita.

Historicamente é paiol de palha seca. Quem ateará o fogo santo?

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