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Em Salvador, andar de Neonavio Negreiro custa 22% do salário mínimo

Oxalá os fatos causem alguma indignação na população preta soteropolitana, culminando na mobilização para reverter o absurdo que nos foi imposto

Foto: Divulgação
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Por Rafael Viana* 

Vem de Angola e abençoa padre qualquer pessoa

Planta, mas quem manda no navio ‘tá na proa

Planta, mas quem manda no Brasil ‘tá de boa

Planta, mas quem manda, manda

Navio, Baiana System (2019)

Sim, caro leitor, você não leu errado. Na cidade que dizem ser a mais negra fora da África, com mais de 80% da população autodeclarada preta ou parda, o mais recente aumento da tarifa de transporte público coletivo por ônibus (mas não só, pois a tarifa do metrô acaba de acompanhar o reajuste) anunciado pela prefeitura de Salvador vai se somar aos outros grandes problemas urbanos enfrentados pelos soteropolitanos, penalizando especialmente o contingente da população que mais utiliza e depende do transporte público: as pessoas pretas.

Não é preciso fazer um exercício de análise muito complexo para sustentar essa afirmação. O exame da classificação da população segundo a autodeclaração de cor/raça no último Censo Demográfico (2010, pois os dados do Censo de 2022 ainda não foram disponibilizados), nos setores censitários em que se dividiu o território do município (Mapa 1), mostra que a população autodeclarada preta ou parda se concentra nos setores do miolo – a área central do território de Salvador, delimitada entre a Av. Luís Viana (Paralela) e a BR-324 – e do subúrbio ferroviário –, área que margeia a Baía de Todos os Santos e era atendida pela linha ferroviária (extinta para dar lugar ao monotrilho que virou VLT – sobre pneus! – e, agora, ante a debandada chinesa, voltará a ser VLT – sobre trilhos).

Projeção Universal Transversa de Mercator | Datum horizontal SIRGAS 2000 Zona 245 | Fonte: Censo Demográfico – IBGE, 2010; CONDER, 2016; Salvador, 2017; Elaboração Vinícius Rafael Viana Santos (Urbanista)

Não por coincidência, o subúrbio e o miolo – lugares de pretos – concentram também as piores condições de habitação e de acesso às infraestruturas técnicas (saneamento, vias, energia, comunicações) e sociais (educação, saúde, lazer, assistência social, etc.), além de serem mais distantes das áreas que concentram a maior quantidade de estabelecimentos de trabalho.

Ao mapear a quantidade de estabelecimentos de trabalho formal inscritos na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) por bairro (Mapa 2), conseguimos evidenciar a seguinte leitura da realidade: os bairros de Salvador com maior concentração de empregos formais são habitados pelos 20% de população autodeclarada branca ou amarela.

Projeção Universal Transversa de Mercator | Datum horizontal SIRGAS 2000 Zona 245 | Fonte: Censo Demográfico – IBGE, 2010; Relação Anual de Informações Sociais – RAIS (Brasil, 2017) CONDER, 2016; Salvador, 2017; Elaboração Vinícius Rafael Viana Santos (Urbanista).

Mas, o que isso tem a ver com o transporte? E com o recente aumento da tarifa?

Ora, se as pessoas pretas moram fora das áreas com maior concentração de empregos, são elas que vão ter de recorrer com maior frequência ao  transporte público para chegar ao trabalho. São elas que vão passar mais tempo se transportando para chegar aos locais de oferta de emprego. São elas que, mesmo não tendo a carteira assinada (pois a CLT nunca foi uma realidade para essa população), terão de se deslocar até os bairros com maior concentração de empregos formais, uma vez que as atividades informais orbitam em torno desses estabelecimentos e são um suporte indispensável ao funcionamento dos mesmos (afinal, como bem nos ensinou o mestre Milton Santos, o circuito inferior é absolutamente funcional ao circuito superior da economia urbana).

São elas que vão arcar com o preço de 5,20 reais por cada viagem para trabalhar!

Se considerarmos apenas o deslocamento casa-trabalho (num exercício simplificador, pois as pessoas não existem apenas para vender a sua força de trabalho, como querem os liberais), temos um custo diário de, no mínimo, 10,40 reais. Multiplicando esse valor por 26 dias no mês (pois não trabalhar por dois dias na semana ainda é um benefício negado a maioria de pretos e pobres do Brasil), temos um custo mensal de 270,40 reais, ou 22,17% do salário mínimo líquido.

Nós, pessoas pretas de Salvador, teremos de destinar no mínimo um quinto de nossos salários apenas para chegar ao trabalho!

Nossos ancestrais chegaram em Salvador acorrentados em porões de navios, mas não pagaram qualquer moeda para entrar neles. Pagaram com suas vidas a produção da cidade e do País, vendo-se presos a essa condição por quase quatro séculos.

Nós, para garantirmos a nossa submissão ao trabalho assalariado – um regime de servidão mais branda, ou apenas de uma exploração menos aviltante que o escravismo – teremos de arcar com a nossa passagem para embarcar no NeoNavio Negreiro urbano.

Em tempos nos quais transformam a população preta de Salvador em um mero ícone para a venda de ingressos de festivais e para incentivo ao consumo turístico de pastiches, apropriações descaradas da riqueza cultural que produzimos, oxalá os fatos acima expostos sirvam para causar alguma indignação na população preta soteropolitana, culminando na mobilização necessária para reverter o absurdo que nos foi imposto e para fazer com que esta minha estúpida retórica não tenha que ser repetida por mais mil anos.


*Rafael Viana – Urbanista, graduado pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU-UFBA), membro do BrCidades – Núcleo Salvador

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