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Direito humano à hidratação: a ADPF 976 como palco à população em situação de rua

A estatal Eau de Paris disponibiliza mais de mil fontes de água para o consumo humano, uma ampla cobertura que merece replicação nos grandes centros urbanos

Fontes de vapor de água refrescante no Bassin de la Villette, no norte de Paris. Foto: Geoffroy Van der Hasselt/AFP
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Por Haneron Victor Marcos e Fernanda Deister Moreira*

A iminência de mais um inverno e a constância da passividade estatal relacionada com a população em situação de rua serviram de mola propulsora ao ajuizamento, no STF, de uma ação de descumprimento de preceito fundamental por dois partidos políticos (Rede Sustentabilidade e Partido Socialismo e Liberdade – PSOL) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), para que as entidades federativas deem efetividade à Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto Federal 7053/2009), indicando uma série de ações a ela concatenadas, em garantia ao direito social à saúde, ao direito fundamental à vida, ao direito fundamental à igualdade, ao direito social à moradia, e na perspectiva do fundamento da República de dignidade da pessoa humana.

Em deferimento cautelar, o ministro relator, Alexandre de Moraes, na compreensão de que existem evidências da conjuntura precária vivida pela população em situação de rua, consectária de omissões estruturais e relevantes do poder público, determinou aos poderes municipais, estaduais, distrital e federal, de acordo com as respectivas competências, a realização de inúmeras ações e intervenções relacionadas com diagnósticos, estabelecimento de meios de fiscalização de processos de despejo e reintegração de posse, tratamento humanizado, proibição de remoção e transporte compulsórios, proibição de arquiteturas hostis, padrões mínimos de qualidade nos centros de acolhimentos, formulação de políticas para fomentar a saída das ruas, entre outras.

Ainda que fundada no direito social à saúde e no direito fundamental à vida, a inicial não adentra com especial dedicação ao tema do acesso à água; sem embargo, o ministro Alexandre de Moraes em sua decisão – insensivelmente denunciada como paternalista por setores reacionários da sociedade e parte da imprensa – foi feliz ao resgatá-lo. Não era necessário ser escolástico; um desviar de olhos seria o suficiente para qualquer cidadão, cristão ou não, perceber que o direito à água aos moradores em situação de rua segue dependente da caridade ou da ação furtiva e que, como dissertado na decisão objeto, “condicionar o acesso à água e à higiene ao ingresso em centros de acolhimento ou à boa vontade de locais privados viola direitos fundamentais que deveriam ser garantidos a todo e qualquer ser humano”.

Alça, pois, o direito à água para a hidratação, para a manutenção da saúde e da vida, a um status de direito fundamental. Ainda que em bom caminho, como o planejado pela PEC 6/2021, que justamente busca positivar finalmente a água no rol de direitos fundamentais, impende registrar que o acesso à água, e mais completamente ao saneamento, já se encontra elevado à classificação de direito humano, como condição ao gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos, como mais ultimamente reconhecido pela Organização das Nações Unidas na Resolução A/RES/64/292 de 28 de julho de 2010, na esteira da longínqua e inaugural Conferência das Nações Unidas sobre Água em Mar Del Plata, Argentina, em 1977, atraindo obrigações legais aos Estados.

Essa resolução referência é produto do Comentário Geral nº 15, elaborado em 2002 – oito anos antes – pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Os pesquisadores Wladimir Mejía Ayala, da Universidade Pedagógica de Columbia, e Carlos Walter Porto Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense,  assim acertam – em seu trabalho Água enquanto disputa epistêmica e política para além dos três estados da água. Perspectiva Geográfica –, ao considerar os históricos conflitos que emolduram o tema, as imposições da fabricação capitalista da realidade e a crescente demanda, que esse reconhecimento pela ONU, de maneira mais enfática, foi tardio, ainda que bem-vindo.

Os direitos humanos foram conhecidos como direitos naturais até o século XVIII, evoluindo ao conceito de direitos públicos subjetivos no século XIX até, finalmente, conquistar a denominação e conteúdo atuais. Os direitos humanos podem ser entendidos como aqueles poderes amparados pela comunidade, que geram condutas obrigatórias nos demais, atraindo a titularidade pelo simples fato de ser um membro da espécie homo sapiens sapiens. Há direitos que correspondem por uma condição proprietária, social, hierárquica, profissional, econômico-financeira, religiosa ou qualquer outra classificação construída com maior ou menor higidez por nossa sociedade, mas há direitos que qualquer ser humano possui, seja quem seja, faça o que faça; esses são os direitos humanos.

Assim, como bem destacado pelo ministro Alexandre de Moraes, a Lei 14026/2020 (equivocadamente chamada de Marco Civil do Saneamento), que alterou a Lei Nacional do Saneamento Básico (LNSB), Lei 11445/2007, trouxe em seu artigo 2º a universalização e a integralidade como princípios fundamentais dos serviços de saneamento. A universalização, no entanto, traz como definição em lei a ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico. Dessa forma, pessoas não domiciliadas convencionalmente, assim como trabalhadores de rua, são deixados para trás no texto da lei. Embora a atualização dada pela Lei 14026/2020 à LNSB em seu artigo 11-B deixe margem para a interpretação da população geral e não apenas domiciliada, há dubiedade que merece superação. Por isso, é necessário que os serviços de saneamento em lei incluam mobiliários como banheiros e bebedouros públicos com o objetivo de não restar dúvidas sobre a necessidade de ditos mobiliários na garantia do direito à água e ao saneamento como um todo para essas populações, uma aspiração legislativa constante no Projeto de Lei 1922/2022 a atingir positivamente a LNSB.

Os serviços de abastecimento de água no País mudaram de uma lógica racional administrativa prevalecente na maior parte do século XX para uma lógica empresarial-pública que possibilitou um avanço significativo rumo à universalização dos serviços, mas que também, em muitos casos, impactou em uma abordagem eminentemente capitalista, com impacto negativo nas populações mais pobres.

Trabalhos como o dos pesquisadores Priscila Neves-Silva, Giselle Isabele Martins e Léo Heller em O direito humano à água e ao esgotamento sanitário como instrumento para promoção da saúde de populações vulneráveis. Ciência & Saúde Coletiva (todos da Fundação Oswaldo Cruz de Belo Horizonte) confirmam as preocupações presentes na decisão objeto, sustentando por meio de entrevistas que a hidratação da população em situação de rua – ademais do acesso às instalações sanitárias – se dá por favores, mediante cobrança, ou de maneira furtiva, ferindo a dignidade e o princípio da não-discriminação.

Uma das soluções possíveis não é nova: entre os séculos XVIII e XIX, com o advento da urbanização, os chafarizes ganharam importância no abastecimento comunitário. As grandes cidades coloniais implantaram redes de chafarizes, bicas e fontes públicas de acesso livre que, introduzidas as devidas adaptações de segurança e acessibilidade, respeitados os novos modelos de urbanização, continuam necessárias àqueles não servidos pelo abastecimento domiciliar, incluída a população em situação de rua, os trabalhadores urbanos de rua, e moradores de áreas não alcançadas pelo sistema coletivo.

A estatal Eau de Paris disponibiliza mais de mil fontes de água – georreferenciadas – para o consumo humano, uma ampla cobertura que merece replicação nos grandes centros urbanos visando a consagração e a efetividade do direito humano de acesso à água potável no Brasil. A universalidade e a integralidade de que fala o artigo 2º da Lei 11445/2007 (princípios incluídos pela Lei 14026/2020) passam por essa solução.

A necessidade, confrontada com a ausência de opções dignas – ou mesmo publicamente precárias – de fontes disponíveis de água potável além do domicílio, torna inequívoca a pertinência da ADPF 976, aperfeiçoada pela intervenção jurisdicional que lançou foco, também, sobre a questão do saneamento das populações em situação de rua, merecendo que siga sendo palco de consolidação de todos os direitos humanos envolvidos.


*Haneron Victor Marcos
é Doutor em gestão pública e governabilidade (UCV/PE), mastère spécialisé em gestão da inovação (Emse/FR), procurador e conselheiro de administração da CASAN, coordenador de assuntos jurídicos do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e colaborador da Rede BrCidades.

Fernanda Deister Moreira é Doutoranda e Mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SMARH/UFMG). Engenheira Ambiental e Sanitarista (UFJF).

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