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Alguns desafios da gestão do território no Brasil e o papel da universidade

As responsabilidades atribuídas aos municípios aumentaram, mas o movimento não foi acompanhado pela transferência de recursos

Foto: Divulgação/Prefeitura de Curvelo
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São relativamente poucos os países federalistas no mundo, com vários estados autônomos distintos unidos por uma administração única (federal). O número de países varia a depender dos critérios que se utiliza para definir o que é um país federalista, porém não são mais que 30 os que têm essas características. O Brasil tem a singularidade de possuir três esferas relativamente autônomas de governo – União, estados e municípios – com leis, orçamentos e algumas competências exclusivas, entre as quais a de regulamentar o uso e ocupação do território. Esta competência está prevista no artigo 30 da Constituição Federal de 1988, que prevê que compete aos municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.

Esse texto defende a hipótese de que o federalismo e a regulamentação de uso e ocupação do território no Brasil apresentam problemas estruturais, grandes o suficiente para dificultar significativamente alguns avanços necessários para enfrentar o processo de mudanças climáticas em curso. Defende-se ainda que as universidades têm um papel importante para a proposição de uma reforma profunda na política para a gestão do território no País.

Contexto e situação

Após mais de duas décadas da ditadura militar que se deflagrou no Brasil em 1964, período no qual se concentrou e centralizou poder na esfera federal, o texto constitucional de 1988 trouxe uma esperada descentralização e aumento de autonomia na tomada de decisão, conferindo aos municípios muito mais liberdade e poder de tomada de decisão do que tiveram no período militar. Porém, gradativamente as responsabilidades atribuídas aos municípios aumentaram e a transferência de responsabilidades não foi acompanhada pela transferência de recursos. Há hoje uma clara distorção na distribuição dos recursos arrecadados através de taxas, tributos e impostos no País. A esfera federal, um único ente, ficou em 2021 com 52% dos recursos, os 26 governos estaduais mais o Distrito Federal ficaram com 26% do total arrecadado e aos 5.570 governos municipais restaram 22% do total, segundo a Frente Nacional de Prefeitos.

As administrações municipais são vistas pelos cidadãos como responsáveis por grande parte dos serviços públicos, mesmo daqueles que não necessariamente são de sua responsabilidade direta. Destaque para os pequenos municípios, onde é mais difícil viabilizar arrecadação dos tributos que podem ser cobrados na esfera municipal, proporcionando uma situação de grave penúria financeira.

Quando se olha para o espaço territorial ocupado pelos municípios com população inferior a 20 mil habitantes (figura 1,) constata-se a importância que estes municípios têm numa política nacional de gestão do território, ou seja, é estratégico o aperfeiçoamento tanto das políticas públicas de modo geral, quanto dos procedimentos de gestão do território nestes locais. É grande a quantidade de municípios ainda menores – são 1.324 municípios com menos de 5 mil habitantes, dos quais 127 municípios com menos de 2 mil habitantes. Vale destacar ainda, na análise do mapa apresentado na figura 1, que na região Norte do País, região menos densa e povoada, onde se encontra a Floresta Amazônica, há municípios que têm mais que 20 mil habitantes, mas que são extremamente extensos, vários deles com dimensões territoriais superiores às de todo um país, como pode se observar na figura 1, em que estão incluídas as delimitações físicas dos municípios.

Figura 1- Extensão territorial dos municípios que têm menos que 20 mil habitantes, com base nos dados do Censo de 2022.  Figura preparada por Patrícia Ferragoni Cruz.

Os pequenos municípios podem solicitar transferências de recursos das esferas estadual e federal para projetos específicos, porém tem-se aqui um novo desafio que se apresenta como círculo vicioso. Para solicitar essas transferências é necessária a preparação de projetos, ou seja, é necessária uma razoável capacidade institucional, que os pequenos municípios não dispõem. Para obter recursos é preciso ter capacidade institucional, e para obter capacidade institucional são necessários recursos. A situação fica ainda mais grave porque boa parte da já pequena capacidade institucional presente nas pequenas municipalidades fica aprisionada por exigências e pelas demandas de informações, esclarecimentos e procedimentos apresentados pelos governos das esferas estaduais e federal, pedidos estes modelados por uma lógica de municípios médios e grandes, que se aplicam com muita dificuldade na realidade dos pequenos municípios. Para que as transferências se concretizem são demandados diagnósticos e planos, ou a constituição de conselhos que, se por um lado têm clara importância e lógica para municípios de grande porte, por outro são superdimensionados para a realidade dos pequenos municípios, sobrecarregando a já limitada capacidade institucional destes locais.

Algumas dimensões do problema de gestão do território

Quando se analisa a normativa e a estrutura das políticas públicas voltadas para a gestão do território brasileiro constata-se que ela é claramente vocacionada para municípios isolados, de médio e grande porte.

Parte dos instrumentos previstos, por exemplo, no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001), tais como outorga onerosa ou transferência do direito de construir, não encontram eco nas demandas que existem nos pequenos municípios. Quando se examinam as orientações para preparação dos diferentes planos (Plano Diretor, de mobilidade, de saneamento, de habitação, entre outros) constata-se que foram modeladas para enfrentar problemas que não necessariamente são relevantes para os pequenos municípios. Essas exigências desproporcionais demandam uma capacidade institucional de elaboração dos planos que nem sempre está disponível nos pequenos municípios. Isto faz com que os planos, desenvolvido por equipes contratadas, muitas vezes se apresentem como um instrumento “estrangeiro”, elaborado para cumprir exigências burocráticas necessárias para liberação de recursos, e que não são vistos como instrumento efetivos frente aos problemas vivenciados nos municípios pequenos.

Da mesma forma, toda a estrutura de governança territorial está centrada no planejamento do território municipal, principalmente aqueles situados dentro dos perímetros urbanos, e onde ainda são frágeis e incipientes os mecanismos de gestão do território nas escalas regional, nos aglomerados de municípios e nas regiões metropolitanas. Quando existem planos regionais, eles ficam esvaziados pela baixa quantidade de recursos que podem ser geridos pela escala regional de governança.

Porém, quando se analisa a tipologia dos municípios brasileiros, constata-se que os municípios de médio e grande porte, isolados, para os quais a lógica atual do planejamento territorial está moldada, representam apenas cerca de 8,6% do total da população brasileira.

Repito aqui o que já foi dito no trabalho Tipologia dos Municípios e a Gestão das Políticas Públicas Urbanas no Federalismo Brasileiro: “Na ótica da gestão pública municipal, identifica-se uma diferença significativa entre os “municípios isolados” e aqueles que constituem “arranjos populacionais”, ou seja, quando se verifica algum grau de contiguidade da mancha urbanizada, além da presença de movimentos pendulares para trabalho ou estudo entre mais de um município. Os municípios em contiguidade exigem do planejamento setorial de transportes, educação, saúde, saneamento e demais serviços públicos um olhar para o território que transcende a delimitação político-administrativa municipal”.

Nas grandes aglomerações de caráter metropolitano tem-se 33% da população; em outros arranjos populacionais tem-se 22,7% da população; e nos municípios isolados de população inferior a 100 mil habitantes tem-se 35,7% da população. Para estas três tipologias de municípios, que abrigam 91% da população brasileira, as estruturas de governança territorial atualmente disponíveis apresentam sérios problemas e limitações.

Para agravar o quadro da gestão do território, sua normativa previu mecanismos participativos de deliberação sobre os planos, que foram infelizmente capturados pela lógica e pelos interesses do mercado imobiliário e das grandes corporações. Em alguns casos a situação se mostra esdrúxula – nos municípios de Natal e de São Paulo, apenas para citar dois exemplos, depois de meses de reuniões e audiências para “ouvir a população”, surge das sombras um plano que contraria todas as aspirações populares, mas que atende perfeitamente aos interesses do mercado imobiliário, liberando direitos de construir absolutamente superiores à capacidade de suporte ambiental e físico. Infelizmente, é um problema que se repete com variações em inúmeros municípios brasileiros.

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