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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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A Universidade na revisão dos rumos do planejamento territorial e enfrentamento das mudanças climáticas

Verifica-se o esvaziamento e o desmonte das estruturas da gestão pública voltadas para a governança regional e para o atendimento dos pequenos municípios

Foto: Divulgação/Prefeitura de Curvelo
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A universidade brasileira esteve presente e tem condições de estar cada vez mais presente na proposição das políticas públicas estruturantes no País. Um exemplo de política pública concebida e detalhada na universidade pública é o Sistema Único de Saúde, que, apesar das dificuldades para ser levado adiante num país com tantas carências e desigualdades, tem se mostrado um verdadeiro esteio para consolidar o direito humano à saúde, garantindo atendimento indistinto para a população toda.

Quando se consideram as instituições de ensino superior federal, às quais deve se acrescentar a rede de universidades públicas estaduais, constata-se que ocorreu uma rápida descentralização da estrutura de ensino superior.

As IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) no Brasil têm uma capilaridade impressionante no território: são 993 campi, praticamente um para cada cinco municípios brasileiros. Desses, 679 são campi de Institutos Federais e 314 de Universidades Federais. O estabelecimento da política de cotas provocou transformações significativas no perfil dos alunos nestas instituições e espera-se que, embora mais lentamente, consiga também trazer alterações no perfil docente.

Estas mudanças, juntamente com a regulamentação (Resolução 07/2018 do Conselho Nacional de Educação) que torna obrigatória a inclusão das atividades de extensão no currículo de formação universitária (10% da carga horária curricular total dos cursos de graduação), tem o potencial para trazer para muito mais perto do território o trabalho que se desenvolve nas IFES e nas universidades em geral.

Desafios decorrentes das mudanças climáticas

Quando se analisam alguns dos vários desafios decorrentes do processo de mudanças climáticas em curso, fica mais clara a gravidade dos problemas hoje verificados na estrutura de gestão territorial do Brasil. A redução dos gases que aceleram o aquecimento pressupõe uma radical alteração do padrão de mobilidade de pessoas e produtos, que por sua vez traz claros reflexos na concretização de uma organização territorial inclusiva, que comporte e dê base para as mudanças necessárias.

Essa discussão leva a vários desdobramentos, mas serão aqui apontados pelos menos três aspectos.

O primeiro diz respeito à importância de melhorar as condições de vida dos municípios de pequena população, ensejando tanto a permanência quanto a atração de novos contingentes populacionais para assentamentos com baixa pegada ambiental. Isso possibilita a produção de alimentos em locais cada vez mais próximos das áreas em que eles são consumidos.

O segundo diz respeito à necessidade de deflagrar políticas públicas que levem a um rápido e massivo processo de florestamento, com espécies nativas e que possam contribuir para a segurança alimentar. A política de florestamento pode incluir a curto prazo o plantio em áreas que já são de domínio público, como por exemplo nas faixas de domínio das rodovias e parte das áreas de preservação permanente ao longo dos cursos de água. Está sendo articulada pelo MST uma iniciativa de plantio de árvores frutíferas em uma faixa de 100 quilômetros de rodovia no estado de São Paulo e considera-se fundamental que esse tipo de ação se multiplique de forma organizada no País, inclusive associado a programas de transferência de renda para a população que vai cuidar para que essas árvores consigam efetivamente se desenvolver.

O terceiro aspecto se relaciona à importância do aproveitamento, inclusive para habitação social, do patrimônio edificado já existente nas áreas centrais das cidades. Esse aproveitamento vem na perspectiva de reduzir os impactos ambientais relacionados à produção de novas edificações, mas também de viabilizar a redução dos deslocamentos, já que parte significativa das ofertas de trabalho e de equipamentos públicos usualmente se situa nestes locais.

Nas grandes cidades brasileiras constata-se hoje um ritmo acelerado de demolição de edificações existentes, face a interesses pela produção de novas unidades com utilização mais intensa do direito de construir, após as vitórias do capital imobiliário na liberação de elevadíssimos coeficientes de aproveitamento dos terrenos. São evidentes os riscos e prejuízos ambientais desta orientação focada nos interesses de mercado.

Por outro lado, quando se deflagra uma iniciativa de aproveitamento do patrimônio existente, um conjunto de fatores faz com que prevaleça o chamado “retrofit”, com retirada de todos os moradores e promoção de reformas relativamente radicais, procurando-se enquadrar a edificação nas novas normativas das edificações.

É sempre problemático, num contexto em que prevalece a cultura de mercado, ofertar as novas edificações reabilitadas à população que ali residia originalmente, que muito frequentemente já não consegue pagar os custos da moradia totalmente remodelada, sem que haja uma política pública direcionada para subsidiar o pagamento.

Figuras 1 e 2- Demolição de prédio na cidade de São Paulo, impulsionada pela legislação permissiva, conduzida pelos interesses do capital imobiliário (Fotos: Ricardo Moretti)

O modelo de “retrofit” se contrapõe a uma política de estímulo à reabilitação progressiva das edificações antigas existentes, se possível com a permanência dos moradores originais (usualmente de baixa renda), enquanto se concretizam as obras de melhoria da segurança (em especial de proteção contra incêndios), de instalações prediais que levem a menor consumo de água e energia e de melhoria possível da acessibilidade.

Essa política pressupõe que se avance nas estratégias de parcerias público-comunitárias (PPPop), em contraponto às parcerias público privado, que são hegemônicas nos modelos de “retrofit”. Pressupõe também ajustes significativos na estrutura normativa, que é atualmente muito dirigida e focada para a produção de novas edificações utilizando-se as normas e critérios técnicos mais recentes, o que pode tornar inviáveis as melhorias progressivas das edificações antigas.

Esta exigência de normas novas para edificações antigas infelizmente tem ocorrido frequentemente no licenciamento da reabilitação, mesmo quando não se faz a desocupação do imóvel para execução das obras de melhorias. As possibilidades de ajuste destas normativas é assunto para o qual a universidade pode e deve trazer uma importante contribuição.

Desafios de governança e o papel das Universidades

Avalia-se que a universidade pode e deve ter um papel ativo no processo de discussão que envolve o questionamento dos problemas e distorções da atual estrutura federativa no Brasil, na perspectiva da sua revisão. Esta revisão deve possibilitar que as administrações municipais, em especial dos pequenos municípios, tenham recursos que viabilizem a concretização, de forma autônoma, das responsabilidades que são hoje a eles atribuídas.

Toda a lógica de governança hoje se afasta das demandas e problemas específicos dos pequenos municípios, e a identificação de novas políticas públicas de gerenciamento do território deve contemplar formas de melhorar a condição de permanência e de atração populacional em direção aos pequenos municípios.

A viabilização desta política pública com inclusão do olhar do pequeno município pressupõe pesquisas, como por exemplo da identificação de fatores que podem fazer com que a população mais jovem se interesse em permanecer e em morar nas pequenas localidades. E tem-se aí uma possível contribuição da pesquisa universitária.

Da mesma forma, entende-se que o modelo de planejamento e gestão do território apresenta múltiplas contradições que estão a demandar a proposição de outro sistema, de uma outra forma de estruturar as políticas públicas. Este novo sistema precisa contemplar o desafio de concretizar o planejamento territorial regional, que hoje praticamente não existe. Precisa ainda incluir outras formas e estratégias de elaboração dos planos de gestão do território, que assegurem a efetiva participação da população, fugindo das armadilhas do sistema participativo falsificado que hoje se constata e que tem servido de palco ideal para a completa submissão dos planos aos interesses do capital imobiliário e das grandes corporações.

Entende-se que a retomada da antiga prática de política pública adotada por vários municípios brasileiros de elaboração de orçamentos participativos pode ser uma das chaves para retomada de uma participação cidadã no planejamento territorial, com empoderamento das decisões locais e da população nas comunidades.

Da mesma forma, a identificação de formas para viabilizar e fazer crescer as parcerias público-comunitárias, com repasse de recursos, de forma responsável, diretamente para as comunidades, pode constituir um passo importante de empoderamento dos setores populares e de melhor aplicação dos recursos públicos. As comunidades podem vir a ter um papel estratégico na gestão e fiscalização da aplicação dos recursos, mas para isso é importante a contribuição da universidade, tanto na proposição de estratégias que permitam a ampliação desta forma alternativa de parceria, quanto no necessário acompanhamento técnico de iniciativas inovadoras que venham a ser desenvolvidas por estas comunidades.

É importante destacar que, no enfrentamento tanto dos desafios da gestão territorial regional quanto de assistência aos pequenos municípios, a esfera estadual poderia ter um importante papel. Porém, o que tem se constatado é exatamente o contrário. Tomando-se como exemplo o estado de São Paulo, verifica-se o esvaziamento e o desmonte justamente das estruturas da gestão pública voltadas para a governança regional e para o atendimento dos pequenos municípios, em um fluxo inverso daquele que se poderia esperar no atual contexto.

Figura 3- Prédio na rua Mauá, na área central de São Paulo, que integra o patrimônio edificado que precisa ser gradativamente reabilitado (Foto: Ricardo Moretti)

Figura 4-  Quadro de entrada de luz instalado para melhoria da segurança do prédio da Rua Maua, em São Paulo, como parte das iniciativas dos próprios moradores na reforma e qualificação gradativa do edifício (Foto: Ricardo Moretti).

A maior parte do território ocupado das cidades brasileiras é recente, com não mais que 70 anos. A lógica do pensamento da construção civil do País se voltou, nas últimas décadas, para o novo, para produção do que ainda não existe. Cresceu muito lentamente o conhecimento das estratégias de manutenção, reforma, reabilitação.

Há atualmente um gigantesco patrimônio edificado no País, que apresenta patologias variadas, inclusive decorrentes de construções feitas de forma informal, com baixos recursos e muitas vezes produzida de forma improvisada. Mas ainda é incipiente o conhecimento técnico sobre as patologias das construções, sobre as técnicas de melhoria e reabilitação.

É fundamental que a universidade se aproxime deste problema e que ajude na viabilização da política de ATHIS (Assistência Técnica para a Habitação Social), prevista em lei (Lei 11.888/2008) mas ainda não implementada na prática, a não ser por experiências pontuais, ainda de caráter piloto, apesar de a legislação já contar com mais de uma década. É forte a contribuição que a universidade tem dado e pode vir a trazer, caso se consiga implementar na prática o que está previsto em lei.

E apesar da rápida expansão territorial das cidades, há em várias das grandes cidades brasileiras um patrimônio edificado constituído por edificações envelhecidas, de caráter histórico ou não, usualmente situadas nas áreas onde há maior concentração de empregos e oportunidades de trabalho, de equipamentos de mobilidade coletiva, de equipamentos públicos em geral.

É estratégico tornar viável que a população mais vulnerável também tenha oportunidade de ocupar este território central. E aqui temos novamente o papel da universidade. Os procedimentos de licenciamento de projetos estão hoje focados na utilização de normas novas em edificações antigas, e é evidente a necessidade de mudança de paradigmas, envolvendo a melhoria gradativa e possível destas edificações. Espera-se que este debate esteja cada dia mais presente nas atividades de ensino, pesquisa e extensão nas universidades.

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