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Intenções, atos e racismo no Brasil

O racismo é negado com toda a retórica que o direito pode utilizar, passando por Gilberto Freyre e citando até mesmo Otelo

Créditos: Divulgação
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Após a festa de Donata Meirelles, uma imagem permanece em nossa mente: a de uma mulher branca e bem disposta, sentada em uma cadeira ladeada por duas outras mulheres negras com vestes “de baianas” na definição da aniversariante.

Esta é a imagem que está em disputa. Se a imagem representa ou não o racismo estrutural existente no Brasil, creio que há um fato igualmente interessante sobre o caso: as seis baianas que participaram da recepção vêm recebendo uma série de ofensas pelas redes sociais e perderam alguns contratos posteriores, pois os clientes temiam que sua presença gerasse uma repercussão negativa. Donata pediu demissão da Vogue, mas certamente não passará por qualquer sufoco cotidiano.

Em toda essa discussão importante sobre cultura, racismo e a falta de imaginação da representante da Vogue no Brasil, temos um fato concreto: a comoção das redes se desfaz com os dias mas as baianas que perderam os contratos, foram as únicas punidas até aqui, de forma objetiva.

Salvador tem indicadores de desemprego agudos e o turismo é uma forma explícita e às vezes agressiva de geração de renda. Do tambor dos blocos que pouco pagam aos integrantes às formas veladas de turismo sexual. Em Salvador, visitantes são disputados para um passado que, hoje, aos farrapos, tenta recriar a beleza com a qual Caymmi, Jorge Amado e outros, representaram a Bahia.

De uma forma estranha, imaginar a festa cercada por um aparato de seguranças negros nos leva à segunda parte deste texto. Pois entre a empresária da Vogue e os empresários do Extra, atuam representações muito semelhantes sobre o lugar dos negros na sociedade brasileira.

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Nos supermercados e restaurantes de espaços turísticos marcados pela desigualdade, sobram formas ilegais de segurança. A execução de crianças e adolescentes em locais de comércio não é uma novidade nas capitais. Em Goiânia me falaram do “fantasminha”, um carro ilegal que passava e sumia com pessoas. Na Baixada Fluminense, a Kombi branca. No interior do Alagoas, soube de uma viatura cheia de homens armados, atirando “nos bandidos”.

O taxista que contou com detalhes esta história vaticinou: “ali não se criam”. Não há quem desconheça estes grupos. Milícias, justiceiros, matadores, seguranças informais, um verdadeiro exército a serviço do patrimônio e do consumo. Das festas de alta sociedade aos espaços de segurança dos grandes hipermercados. Alguns anos atrás.

Em pesquisa sobre um caso de racismo, me deparei com estes casos de forma tão frequente, que foi possível estabelecer quadros sociológicos. A regra dos shoppings e hipermercados passa pela truculência. Grandes supermercados têm como modus operandi abrir a mochila de adolescentes negros. Seguranças de shopping expulsam pessoas negras com base em avaliações preconceituosas.

Em Aracaju, um segurança matou um trabalhador com o mesmo golpe que atingiu Pedro Henrique Araújo. Um mata-leão. Igualmente filmado. O trabalhador tentava apenas pagar uma conta às 22 horas e sua ação foi interpretada como tentativa de assalto.

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Estes casos chegam ao Judiciário que, em geral, quando os acolhe, tipifica dentro do Código de Defesa do Consumidor (as famosas portas giratórias de banco são o exemplo mais perfeito da indenização alcançada: em média cinco mil reais).

Não avançamos na formação de uma jurisprudência sobre mortes como a ocorrida no Extra, explicitando que foram motivadas por racismo. O racismo é negado com toda a retórica que o direito pode utilizar, passando por Gilberto Freyre e citando até mesmo Otelo.

Pois imaginem a “comoção” (sim, o ministro me obriga a colocar entre aspas este termo) no mundo jurídico se passássemos a aceitar que estes são casos de racismo e que é o supermercado e não a empresa de segurança, o responsável pela indenização. Imaginem a comoção se os juízes passassem a aplicar a Constituição de 1988, que estabelece o racismo (e este caso de Pedro se enquadra na letra da lei), como crime inafiançável e imprescritível.

As baianas sem emprego, Pedro morto asfixiado, muitas mortes na Fallet. Imaginem se cada caso de racismo não tivesse sua tipificação alterada para “ofensa da honra”, “sentimento subjetivo”, “brincadeira”, “não intencional”. E se os tribunais passassem a indenizar estes casos tipificando-os corretamente?

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