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A culpa dos reis do agronegócio pelo massacre na Amazônia

As mortes no campo sempre ocorreram, inclusive nos governos do PT. Com Bolsonaro, porém, a violência explodiu

Quase a metade do gado brasileiro (43%) é criado nos estados da Amazônia Legal
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O assistente de palco corre apressado para ajeitar duas pastas imensas com a letra da música para Chico César e Geraldo Azevedo cantarem no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Diferente das outras canções da dupla, a que será apresentada precisa ser lida, pois são mais de 11 minutos para contemplar toda a letra escrita por Carlos Rennó e musicada por Chico César.

“Reis do Agronegócio” é de 2015. De lá para cá, o rosário de mortes e males provocados pelo agronegócio e listados por Rennó aumentou exponencialmente impulsionado pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Chico e Geraldo cantam para uma plateia urbana. Versam sobre uma realidade que os mineiros presentes no Palácio das Artes conhecem apenas de longe, muitas vezes com a percepção enviesada pelo dinheiro do agro (que é pop, é tech e é tudo, inclusive capaz de comprar corações e mentes) nos comerciais dos telejornais.

Com o palco iluminado de vermelho, os artistas são ovacionados após cantarem o trecho: “Vocês que oprimem quem produz e que preserva / Vocês que pilham, assediam e cobiçam / A terra indígena, o quilombo e a reserva/ Vocês que podam e que fodem e que ferram / Quem represente pela frente uma barreira / Seja o posseiro, o seringueiro ou o sem-terra / O extrativista, o ambientalista ou a freira”.

Chico César grita: “Viva Dom! Viva Bruno! Viva todos os trabalhadores rurais mortos pelo Brasil!”. A plateia aplaude. Alguns balançam suas pulseiras de miçangas com alusões a grafismos indígenas. Não falta empatia, mas é o mais perto que a maioria ali chega de um Brasil brutal, que derrama sangue longe das capitais e dos palcos iluminados.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) detalha essa catástrofe histórica anualmente, sempre em abril, quando lança o relatório sobre violência no campo. Nesta segunda-feira (17), a CPT revelou que foram 47 assassinatos por conflito no campo em 2022, um crescimento de 30,55% em relação a 2021.

A maior parte da violência tem como palco os estados que formam a Amazônia Legal. Os dados revelam, segundo a CPT: “a durabilidade da expansão da fronteira agrícola”. Ou seja, o avanço da soja, do boi, da madeira e do garimpo floresta adentro. Das 47 mortes, 34 foram na Amazônia (73,25% do total). Rondônia e Maranhão contabilizaram sete (7) assassinatos cada um.

Como repórter da Repórter Brasil estive no acampamento Tiago dos Santos, organizado pela Liga dos Camponeses Pobres, em Rondônia. Dois dos 47 assassinatos de 2022 aconteceram lá, em um conflito que se acirra a cada dia e parece estar longe do fim. Em 2021, foram outras três mortes somente de acampados do Tiago dos Santos. No vídeo abaixo contamos um pouco sobre como a polícia local atua:

No Maranhão, foram três mortes nos arredores da Terra Indígena Araribóia em 2022, segundo a CPT. Estive com um dos assassinados, Janildo Oliveira Guajajara, meses antes, quando acompanhei um intercâmbio entre os indígenas do Vale do Javari, no Amazonas, com os Guardiões da Floresta, do povo Guajajara, que defendem o território com seus corpos, diante da ausência do órgãos estatais frente à invasão de madeireiros. Janildo era um dos guardiões.

“Os dados são reveladores que temos a Amazônia sob ataque, os agrotóxicos como arma química e a violência recorrente com os povos do campo no Brasil, assim como os povos indígenas ameaçados de genocídio”, afirmou a coordenadora da CPT, Isolete Wichinieski,  durante o lançamento do relatório.

É impossível desvincular a explosão da violência ao governo Bolsonaro e sua agenda anti-ambiental, armamentista e avessa aos direitos dos povos indígenas e à reforma agrária. As mortes no campo sempre ocorreram. Somos uma nação forjada no massacre de indígenas e no trabalho escravo dos africanos, que nunca cessou, inclusive nos governos do PT, mas com Bolsonaro a violência explodiu.

O livro lançado pela CPT tem 257 páginas e traz análises fundamentais que vão no cerne da violência no campo. Em um dos textos, Jéssyca Tomaz de Carvalho e Adriano Rodrigues de Olveira consideram que estamos diante de: “uma marcha de apropriação daquilo que determinamos como territórios bloqueados”. Ou seja, querem passar a boiada por cima dos espaços demarcados dos povos indígenas, camponeses e reservas ambientais.

Essas áreas, explicam os pesquisadores, são responsáveis por impedir “o avanço da livre acumulação ampliada do capital no campo, no subsolo e nas florestas brasileiras”. Quem disputa esses territórios, segundo Carvalho e Oliveira, são as corporações de commodities com poderes para influenciar o governo. Nas palavras cantadas por Chico César e Geraldo Azevedo são os reis do agronegócio.

“Identificamos como corporações de commodities as empresas capitalistas, oriundas principalmente do capital transnacional, que promovem a pilhagem territorial via agronegócio ou mineração, o que ressignifica, na contemporaneidade, o pacto colonial das colônias de exploração, com novos arranjos territoriais para além das metrópoles europeias”, detalham os pesquisadores no texto publicado pela CPT.

Durante o lançamento, Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) foi convidado a falar. Há menos de um ano ele buscava o corpo do amigo, Bruno Pereira, nas águas do rio Itaquaí, no Vale do Javari, no Amazonas.

A última vez que vi Marubo foi durante uma coletiva concedida aos jornalistas enquanto centrava esforços na busca de seu amigo Bruno e do jornalista Dom Philips, em Atalaia do Norte (AM), dias após o desaparecimento deles.

Passados 10 meses, percebi Marubo com o semblante menos carregado. Depois do período de trevas bolsonarista, ele diz ter esperança no atual governo, mesmo avaliando que o plano de proteção para os povos indígenas do Vale do Javari ainda “está patinando”.

Certo é que na proteção dos povos do campo o governo Lula não tem espaço para errar, por mais pressão que receba dos reis do agronegócio. Sob pena de outros nomes se juntarem ao posseiro, ao seringueiro, aos sem-terra, ao extrativista, ao ambientalista, a freira, a Bruno e Dom na lista daqueles que tombaram em defesa da Amazônia e que Chico César e Geraldo Azevedo cantam em turnê pelo país.

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