Artigo

Nunca existirá segurança sem liberdade, escreve José Sócrates

Ex-primeiro ministro de Portugal aborda caso do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, espancado e morto no aeroporto de Lisboa

Ihor Homeniuk chegou a Portugal dia 10 de março. Dois dias depois estava morto. (Foto: Reprodução ) Ihor Homeniuk chegou a Portugal dia 10 de março. Dois dias depois estava morto. (Foto: Reprodução )
Apoie Siga-nos no

O cidadão ucraniano Ihor Homeniuk desembarcou no Aeroporto de Lisboa em 10 de março deste ano e nesse dia foi impedido de entrar em Portugal. A seguir, foi levado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (a polícia dos aeroportos) para uma sala onde, depois de várias peripécias, foi amarrado, espancado e onde viria a morrer.

Nas cerca de cinquenta e sete horas em que esteve detido em território português, ele não teve acesso a um tradutor, nem a advogado, nem foi apresentado a um juiz, como impõe a Constituição da República. Nas horas seguintes, a certidão de óbito foi falsificada, a morte foi dada como natural e o assassinato foi encoberto. O crime acabou desvendado após a autópsia e uma denúncia anônima – Ihor foi torturado e morto de forma violenta nas instalações do aeroporto.

O tenebroso assunto foi mantido a muito custo no espaço público por algumas jornalistas da imprensa escrita – o resto, a indústria televisiva que domina a agenda política e que, na prática, decide o que existe e não existe, não viu no caso motivo de indignação (com a virtuosa exceção de uma delas, que deu a notícia a 29 de março). O Primeiro Ministro e o Presidente da República, apesar de aparecer todos os dias na televisão não se sabendo se a distribuir afetos ao povo ou se a pedi-los, também não sentiram necessidade de se referir ao desonroso assunto para além de breves considerações de circunstância no momento em que o crime foi revelado. Nove meses passados, o assunto é agora o tema político destes dias.

O que ocorreu é muito grave, mas mais grave ainda foi a ausência de debate.

O debate centra-se, assim, na ausência de debate. Um debate sobre a indiferença política ao escândalo. A que acresce o reflexo clássico da defesa institucional – a tese das maçãs podres. Nada há de sistêmico, de cultura de violência ou de hábitos de arbítrio. Tudo se deve à maldade isolada de uns quantos inspetores da polícia que não podemos confundir com os restantes membros da organização.

E, todavia, fica a faltar explicação para um sistema que permite a ausência de tradutor, o abuso dos policiais sem autoridade para impedir a entrada, o uso de armas proibidas, o comportamento do juiz que autorizou por mail a extensão da detenção. No momento em que escrevo assisto ainda, e em direto, às inacreditáveis declarações públicas de um diretor de uma outra polícia que se sente no direito de tornar pública a sua proposta institucional para o problema, recomendando a fusão das duas polícias.

As declarações são naturalmente provocatórias para o governo da República, o único que tem competências neste domínio. No entanto, o que mais me impressionou na sua estudada e bem preparada declaração foi o ponto prévio em que afirmou que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (mais uma vez, a policia dos aeroportos que custodiava o cidadão assassinado) é uma boa policia e que tem excelentes profissionais. Nem uma palavra para condenar o assassinato, nem uma palavra para apresentar condolências à família, nem uma palavra para lamentar o dano que o caso causa ao Estado. Fico com a impressão de que a declaração do chefe da polícia foi feita com o único propósito de afirmar uma certa cultura de autoridade policial.

Isto é aqui, na Europa. Aqui ao lado, na França, manifestantes protestam todas as semanas contra uma lei em discussão na Assembleia Nacional que pretende tornar ilegal qualquer filmagem de atuação policial. O governo francês parece assim desistir de uma polícia sujeita às regras da publicidade e do escrutínio publico. Desistir de uma polícia republicana. O implícito na lei é que a polícia deve estar protegida do olhar público porque só assim poderá atuar com eficácia. Difícil de acreditar. Se formos um pouco mais atrás, certamente alguns ainda se lembrarão de que, na sequência das ultimas eleições europeias, a Presidente von der Leyen decidiu propor uma nova pasta governamental que tutelaria os assuntos relativos à imigração e a segurança interna. Finalmente, na Europa, a imigração passaria a ser questão de segurança. A esta nova pasta governamental propôs ainda a senhora Presidente que se chamasse “proteção do nosso modo de vida europeu” Nenhuma dúvida de interpretação – a imigração é não só um problema de segurança, mas também uma ameaça ao “modo de vida europeu”.

O que se passou no aeroporto de Lisboa não é, ou não é apenas, um infortúnio, um incidente trágico e isolado – ele é um sinal claro de uma obscena mudança na cultura política europeia.

E que tem reflexos nas culturas internas das policias. Uma deriva. Uma deriva que nasceu na crise económica e cresceu com o drama dos refugiados. Uma deriva que ao longo dos últimos anos criou novas leis securitárias que multiplicaram as agências de inteligência e aumentaram a vigilância e o controle policial pelo Estado. A exploração do medo – do terrorismo, dos migrantes e dos refugiados – encorajou o clássico discurso de que é preciso abdicar de um pouco de liberdade em troca de um pouco mais de segurança. Tudo isto parece o que é – uma escorregadia dança política em direção a estados de segurança e de vigilância. Esta é a tragédia europeia. E um desastre para a sua reputação internacional.

Para muitos dos meus amigos brasileiros é difícil acreditar que isto esta a acontecer aqui na Europa. Que estes ventos autoritários existam num espaço político construído ao longo de décadas com base nos valores da paz, do direito internacional e dos direitos humanos. Bem vistas as coisas, estamos longe da catástrofe política brasileira. Aqui não há governantes que dão pulos de contente com a morte seja de quem for e não temos ainda propostas de “excludentes de ilicitude” para policiais, sabendo que isso significa um descarado incentivo ao uso de armas de fogo.

Todavia, não se enganem, o que enfrentamos é sério. E o que a meus olhos é mais grave não se deve tanto ao que diz a extrema direita europeia, mas ao que a esquerda e a direita democrática desistiram de dizer – que a diversidade é boa para a Europa, que a imigração pode constituir a resolução de alguns problemas europeus e que o que mais devemos temer é um Estado em que as suas instituições abusam do seu poder. Que nunca existirá segurança sem liberdade. E que é esta que vem primeiro, não a outra. É triste ver assim a Europa. Mas é ainda mais triste ver um governo socialista acusado de desvalorizar um grave caso de violência policial em que um cidadão estrangeiro acaba assassinado. Mais do que a cultura de uma qualquer instituição policial, o que está em causa é um problema de cultura política.

Publicado na edição n.º1137 de CartaCapital, de 23 de dezembro de 2020

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo