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No mundo do trabalho, qual Brasil voltou?

A Europa mostra que é possível harmonizar a proteção ao trabalhador com o trabalho digital. Apostar no caminho oposto seria nefasto para a economia brasileira

Uber, Rappi, Ifood, Loggi e tantas outras empresas gerenciam a vida do novo proletariado, por meio de um algoritmo impenetrável e literalmente desumano, que determina o ritmo e o valor do trabalho Foto: Djalma Vassão/FotosPublicas Uber, Rappi, Ifood, Loggi e tantas outras empresas gerenciam a vida do novo proletariado, por meio de um algoritmo impenetrável e literalmente desumano, que determina o ritmo e o valor do trabalho Foto: Djalma Vassão/FotosPublicas
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“O Brasil voltou”.

Esse foi um dos principais motes que o governo Lula mobilizou para transmitir a mensagem de que o país estava buscando uma reinserção internacional e superar o isolamento em que se encontrou. Assim, pretendia ser considerado como um agente relevante em debates globais.

No âmbito do mundo do trabalho, esse empenho ocorreu de forma mais evidente no encontro entre Lula Biden, em setembro deste ano. Conjuntamente, lançaram a “Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras”, com a meta de fomentar o trabalho digno e reduzir a precarização laboral. Dentre os objetivos colocados, apontou-se para a promoção de novos esforços para capacitar e proteger os direitos trabalhistas de trabalhadores e trabalhadoras nas plataformas digitais.

Bem, se a prática é o critério da verdade, é fundamental examinar o que está sendo feito para concretizar esse objetivo. No caso brasileiro, o governo criou um Grupo de Trabalho com a finalidade de elaborar proposta de regulação do trabalho via plataformas digitais. Composto por representantes do governo, dos trabalhadores e das empresas, o propósito do GT era obter um consenso em torno de temas centrais a respeito do assunto e enviar a proposta ao Congresso.

Após diversas reuniões realizadas entre junho e outubro de 2023, contudo, não se chegou a um denominador comum. Posteriormente, foram realizadas conversas bilaterais. Há notícias de que há um acordo entre motoristas e empresas de transporte de pessoas e de um impasse entre entregadores e empresas de transporte de mercadorias. De qualquer forma, nada foi formalmente anunciado até o momento.

A proposta que o governo Lula encampar provocará uma grande repercussão. No plano interno, principalmente pelo fato de as empresas considerarem esses trabalhadores como autônomos e não lhes assegurarem direito algum. No âmbito externo, porque o Brasil é um dos maiores mercados do mundo em que essas empresas atuam e pelo papel que o país optou por assumir como um ator importante nessa agenda.

Sendo assim, é indispensável que exista uma preocupação com o teor dessa proposta. Um posicionamento prevendo menos direitos que os indicados no art. 7º da Constituição Federal – direitos que são reconhecidos a todos os trabalhadores e não apenas aos empregados – criará uma subcategoria, oficializando a precarização das condições de trabalho. Uma medida nesse sentido tem potencial de desestruturar o mercado de trabalho, estimulando a dispensa de trabalhadores contratados via CLT para admiti-los por meio de plataformas digitais.

Também é fundamental que qualquer proposta para regular a atividade leve em consideração a dinâmica do trabalho via plataformas digitais. Não é possível aceitar acriticamente o discurso das empresas, sem olhar para o que acontece no mundo real. No Brasil, diversos estudiosos realizaram pesquisas de fôlego a respeito do assunto. Instituições públicas, como o Ministério Público do Trabalho, promoveram investigações aprofundadas sobre o funcionamento dessa relação de trabalho. Quando identificados elementos que caracterizam a existência de uma relação de emprego, é dessa forma que o trabalho via plataformas digitais deve ser tratado.

Evidentemente, a legislação brasileira pode ser aperfeiçoada. Um caminho promissor é o apontado pela Europa. Na semana passada, o Conselho e o Parlamento Europeu acordaram uma proposta de diretiva para melhorar as condições de trabalho via plataformas digitais. O documento está baseado em dois pilares: facilitar a classificação correta dos trabalhadores e criar regras sobre o uso dos algoritmos.

Sobre o primeiro aspecto, a proposta presume que os trabalhadores são empregados das empresas proprietárias das plataformas digitais quando se constatam ao menos dois dentre os seguintes indicadores: (i) limitação do valor máximo que os trabalhadores podem receber; (ii) supervisão do desempenho, inclusive por meios eletrônicos; (iii) controle da distribuição e da alocação do trabalho; (iv) controle das condições de trabalho e limitações quanto à escolha do horário de trabalho; e (v) restrições para organizar o trabalho e estabelecer regras sobre aparência ou conduta.

Identificados, no mínimo, dois desses indicadores, considera-se que há uma relação de emprego, cabendo à empresa provar que a sua relação com o trabalhador é de outra natureza. Trata-se de uma regra apropriada para uma relação marcada por uma grande desigualdade entre as partes, o que a inclui a captação massiva de dados dos trabalhadores pelas empresas.

Em relação às regras sobre o uso dos algoritmos, a proposta estabelece mecanismos para assegurar maior transparência, como informar aos trabalhadores sobre a utilização de sistemas automatizados de monitoramento e tomada de decisões, além de impedir o tratamento de determinados tipos de dados pessoais, como prever o engajamento em atividade sindical.

O caminho europeu mostra como é possível conjugar a proteção do trabalhador com as novidades do trabalho via plataformas digitais. Optar por uma trilha na direção oposta, criando uma subcategoria para classificar esses trabalhadores, terá um efeito nefasto para a economia brasileira e situará o país como uma referência negativa internacionalmente. A posição que o governo adotar colocará para o restante do mundo, pelo menos nas questões do mundo do trabalho, qual foi o Brasil que voltou.

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