Artigo

Gustavo Franco e o aprendizado

Até quando perseguiremos equilíbrios no orçamento gerando desequilíbrios insustentáveis na sociedade?

Gustavo Franco. Foto: Divulgação/ Rio Bravo
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O ex-presidente do BC, Gustavo Franco, publicou em sua coluna mensal na revista Exame um artigo intitulado “Aprendizados tardios”. A peça percorre o tema do equilíbrio fiscal como fator necessário para a saúde da democracia, algo que aprendemos tardiamente e de cuja transcendência alguns (de DNA petista) ainda não se deram conta. Convém relembrar a trajetória do aprendizado brasileiro em matéria de desenvolvimento.

Dos Anos Dourados à crise do modelo concentrador da ditadura, a esperança se transformou em frustração. Na sequência veio a Constituição de 1988 que, diriam alguns, “tornaria o Brasil ingovernável”, por seus “excessos”, pela “farra com dinheiro público”. Os constituintes teriam criado “uma constituição que não cabe no orçamento”.

Motivado pelos defensores da entrada na globalização a todo custo, Collor tratou de dar um choque de liberalismo no país, completado depois por FHC e seu Plano Real (do qual Franco foi protagonista), o que atirou as aberturas comercial e financeira contra o peito da indústria nacional, inopinadamente, ferindo de morte a competitividade externa do Brasil, como apontou o CEO da Gerdau, Gustavo Werneck, na mesma revista Exame.

Privatizações foram feitas, como em uma liquidação de fim de feira, para gerar receitas extraordinárias, que seriam essenciais para equilibrar o orçamento fiscal. Mas o superávit momentâneo obtido pela venda dos móveis da casa  foi logo devastado pelos altos juros que o Banco Central do Dr. Franco impôs ao país. Além disso, os recursos da seguridade social foram desviados para cobrir o resultado primário através do mecanismo  batizado de Desvinculação das Receitas da União – DRU. Subfinanciada a seguridade social, os trombones de aluguel do grande capital puderam repercutir o tal “rombo” da previdência. O objetivo de toda essa manobra? Segurar a âncora cambial,  o que só foi possível pelas seguidas ajudas do FMI.

A âncora cambial se dissolveu devido aos ataques especulativos que avançaram do México em 1995, da Ásia em 1997, da Rússia em 1998, até chegarem ao Real. Mas, ao colocar em risco a reeleição do incumbente, a desvalorização cambial foi adiada até o limite da irresponsabilidade. Em janeiro de 1999, assegurado o segundo mandato, o Brasil sofreu uma desvalorização do Real de fazer inveja aos tempos do ministro Delfim. O Dr. Franco certamente se lembra de quando administrou o purgante de 45% de juros ao ano sobre a dívida pública em sua última reunião à frente do BC. Curiosamente, o paladino do equilíbrio fiscal deu uma contribuição decisiva para arruinar as contas públicas, ao multiplicar as despesas financeiras do Tesouro. A média dos juros do período em que permaneceu na cadeira que hoje é de Campos Neto foi de 32% a.a.

Claro que o nosso herói de capa e espada, o capitão Austero, não se importa com as consequências de suas medidas sobre o Tesouro. Junto com seus companheiros da Liga da (In)justiça, colocaram toda a ênfase no resultado fiscal primário, que convenientemente omite as despesas com os juros da dívida pública, de longe o maior gasto do Tesouro. Assim, como prestidigitadores, fazem-nos a todos focarmos nas despesas operacionais e nos gastos discricionários e não prestarmos a devida atenção ao resultado financeiro onde, como demonstraremos, reside o problema.

Cabe a pergunta: na gestão FHC faltaram fundamentos fiscais para assegurar a credibilidade diante dos investidores internacionais? Uma pista vem do indicador Dívida/PIB. FHC herda uma relação dívida/PIB de 37%. Em 1999, isso chegou a 71%. Diante do desequilíbrio fiscal inescondível,  a Liga da (In)justiça prega como solução a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

A LRF instituiu o compromisso com o equilíbrio fiscal. Isto é: só é permitido ao Estado gastar o que arrecada. Não é aceito também emitir dinheiro para elevar o gasto, pois isso aumenta a dívida e (dizem) gera inflação. Há uma exceção, é claro: é permitido emitir dívida nova para cobrir a antiga, ou melhor, os juros da dívida antiga. Ou seja, os mesmos juros elevados administrados pelo BC durante o Plano Real foram responsáveis por minar a sustentabilidade da dívida pública, mas não há nada de mau nisso para a Liga da (In)justiça. Paulo Guedes, num rasgo de sincericídio, disse em entrevista aquilo que outros da Liga da (In)justiça não tem coragem de dizer fora dos corredores da Faria Lima: “rico capitaliza recursos, pobre consome tudo”. A virtude está, pois, na privação do hoje em favor da provisão para o futuro, a tal austeridade, tal como na fábula da cigarra e a formiga.

A partir da LRF (ou apesar dela), sob a batuta de Lula I e II, os superávits fiscais foram sistemáticos, e a dívida pública caiu de 76% para 62% do PIB. O fator que mais contribuiu foi o crescimento do PIB, e nele o consumo das famílias, aditivado pelas políticas sociais e os investimentos internos, a tal gastança que hoje dizem ameaçar a meta do “déficit zero”. A bonança foi resultante do comportamento pouco austero do governo-cigarra, mesmo com todos as concessões aos mercadistas. O “DNA petista” passou bem pelo teste da responsabilidade fiscal.

Ah, mas e a Dilma?

O governo Dilma, ao qual atribuem a “Nova Matriz Econômica”, composta por tentativas de baixar os juros, estimular os bancos públicos, impor controles sobre a volatilidade cambial, domar os custos de energia etc., revelou um “DNA petista” raiz ou, no fim, sucumbiu ao DNA da Faria Lima? Vejamos: a economia vinha desacelerando desde 2012. Quem dera o ciclo de consumo de bens duráveis pudesse suportar uma espantosa valorização do dólar combinada à queda nas exportações. Em 2014, o resultado primário ficou em -0,4% do PIB, algo normal tendo em vista a desaceleração da economia e a queda da arrecadação. Dilma convoca Joaquim Levy, acossada pelos tremores que ecoavam das colunas dos membros da Liga da (In)justiça, dos noticiários da Globonews, dos editoriais da Folha e do Estadão. As palavras “rombo”, “gastança”, “desperdício” e que tais povoavam a mente do respeitável público, apavorado com a ameaça do Armagedom das finanças públicas, caso medidas duras não fossem imediatamente realizadas. Terríveis consequências adviriam de romper-se o limite mágico da relação dívida/PIB, que caso fosse superado abriria as portas para a cavalgada dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse sobre a pobre nação brasileira.

Joaquim Levy operou a doutrina de “choque de eficiência”. Foram quatro choques simultâneos: aumento das tarifas de energia, desvalorização cambial, elevação dos juros e corte de gastos. A intenção era realinhar os preços via mercado e apaziguar a trajetória da relação dívida/PIB. Tudo feito com o apoio entusiasmado do mercado, tanto que a economista Laura Carvalho, em seu já clássico “A valsa brasileira”, chamou esse conjunto de medidas de “agenda FIESP”. Resultados: a inflação disparou para os dois dígitos (e para longe da meta), o déficit primário de -0,4% foi para -2,0% em 2015 e -2,5% em 2016. O PIB entre 2014 e 2016 apresentou queda acumulada de -6,6%.

O leitor tem o direito de achar curiosos os resultados da política de austeridade, do corte desairado de gastos com o propósito de equilibrar o orçamento e proceder segundo reza a versão da Liga da (In)justiça sobre as virtudes da responsabilidade fiscal. A visão heterodoxa, tão criticada, avalia que  ao cortar gastos em um momento de desaceleração econômica, o governo elimina o componente autônomo que permite a criação de renda para além da capacidade das empresas e famílias que estão em momento de retração de investimentos e de consumo. A queda no gasto geral da sociedade acarreta o declínio da renda e, portanto, da arrecadação do governo. Foi o que aconteceu, quod erat demonstrandum!

O esforço pelo superavit se transformou em déficit e explosão da dívida pública e dos juros. A dívida saltou de 63% do PIB em 2014 para 76% do PIB, não só pelo déficit primário causado pela aventura do equilíbrio a qualquer custo, mas pelos custos associados ao patamar elevado da taxa de juros, que atingiu 14,25% em 2015.

Uma caminhada pelas contas públicas avalia a hipótese do “arrocha que a dívida cai”. Entre 2013, a dívida pública era de R$ 4,9 trilhões, em valores de hoje. Em 2023, alcançou R$ 7,9 trilhões, um crescimento de 59,4% no período, ou 4,8% ao ano. A relação dívida/PIB saiu de 51,54% em 2013 para 74,19% em 2023, quase 44% de aumento. Como dito, a dívida pública varia por dois motivos: o resultado primário (o que o governo gastou versus o que ele arrecadou), e a rolagem da dívida antiga (juros). A que se deveu o crescimento da dívida pública nesses 10 anos? À gastança do governo ou ao refinanciamento das dívidas antigas?

No período, a contribuição do primário para o déficit nominal foi de 26%, enquanto a participação do pagamento de juros foi de 74%. Isso quer dizer que o aumento da dívida pública registrado pelo resultado nominal se deveu 2,8 vezes mais ao pagamento de juros, ou seja, dívida antiga rolada, do que ao resultado primário do governo. Em 2023, o déficit primário tem contribuído em 8% e o pagamento de juros em 92% para um crescimento de 8,44% da dívida pública nos últimos 12 meses. Esses números demonstram que o aumento da relação dívida/PIB é fruto de décadas de juros altos e não de déficits fiscais. São os altos juros que provocam déficit nominal e desconfianças sobre a trajetória da dívida e não o contrário.

O aprendizado tardio talvez seja diferente do que defende Franco. O equilibrismo fiscal deu em atraso, desindustrialização, aumento da desigualdade, da pobreza e da precariedade. Quanto à democracia, talvez possamos explicar o avanço recente do fascismo pelos rigores da responsabilidade fiscal. Ou, o que é mais prudente, verificar que a desilusão produzida por ideias como essas acumulou ressentimento à ordem política. Se o velho mundo não atende mais às maiorias, qualquer plataforma política que pregue a destruição do estabelecido se torna atraente; instala-se o salve-se quem puder. Isso pode ser visto no Brasil, nos Estados Unidos, no Chile, recentemente na Argentina e na Alemanha.

É a entrega do destino das sociedades aos desígnios dos mercados que tem enfraquecido as democracias. Até quando perseguiremos equilíbrios no orçamento gerando desequilíbrios insustentáveis na sociedade? Talvez esse seja o próximo triste aprendizado tardio. Pelo menos até que a Liga da (In)justiça acorde de seu delírio dinheirista e perceba que o mundo em que coabitamos vai, dia-a-dia, se tornando inviável, seja pelo paroxismo da desigualdade, que acabará por paralisar a acumulação de capital (se não há emprego e renda, os fluxos de capital terminam no atoleiro da estagnação), seja pela destruição acelerada do meio ambiente. Oxalá percebamos, mais cedo do que tarde, que não se pode comer, beber ou respirar dinheiro.

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