Artigo

É preciso construir o caminho do Brasil sem Bolsonaro, diz Esther Solano

‘Que venha 2021 e comecemos a derrotar os monstros’

O presidente da República, Jair Bolsonaro. Foto: Alan Santos/PR
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Quero começar este texto de fim de ano com um agradecimento. Agradeço a você, leitor, leitora, amigo, amiga, conhecido, desconhecido. Obrigada por ter me acompanhando ao longo deste ano. A gente não se encontra para além das páginas, mas se gosta. Saber que você está aí, a cada 15 dias, é um certo tipo de tratamento antissolidão. As palavras conectam de uma forma que os fascistas jamais poderão entender. Nestes meses recebi alguns e-mails e mensagens de vários de vocês e a cada um deles me senti feliz e imensamente honrada pelo fato de as minhas palavras dialogarem com as suas, minhas reflexões com os pensamentos de vocês, minhas dúvidas, minhas incertezas e minhas angústias com as de vocês.

Algumas colunas foram um desabafo, um “foda-se”, pois, sejamos sinceros, nesses últimos anos, um bom “foda-se” tem sido a expressão mais terapêutica diante de todas as tragédias que temos suportado no Brasil. Também tiveram as colunas para “mandar à merda” certos personagens, personagens culpados por jogar o Brasil neste lugar funesto e lôbrego no qual habita o governo de Jair Bolsonaro. A lista é tão grande que mereceria várias páginas. Eu tenho uma memória de mosquito para certos assuntos, mas, para outros, minha memória é a de uma manada de elefantes. Lembro a ferro e fogo de cada um desses personagens. Não esqueço e não perdoo. Acho que essas foram as colunas que mais sucesso tiveram. É que mandar à merda também é muito terapêutico, e tem tanta, mas tanta gente, que merece ser mandada para aquele lugar.

Este foi o ano da pandemia. Há quase um ano a gente permanece nesse estado de coisas pandêmico e distópico. Quarentena, isolamento, distanciamento social, álcool em gel, máscara, higiene obsessiva… Meu mais sincero obrigado a quem pôde ficar e ficou em casa, se protegeu e, assim, cuidou de sua saúde e da saúde de todos. Meu mais sincero obrigado a quem, tendo de sair para trabalhar, foi responsável o suficiente para fazê-lo em segurança. A quem entendeu o desafio histórico desta situação e soube agir à altura. Obrigada a vocês, pois lhes devo a minha vida. Infelizmente, também houve os outros, os levianos, os idiotas, aqueles que não se comovem com quase 1,5 milhão de mortos no planeta, aqueles que olham para os caixões, mas não os enxergam, que agem como se na UTI estivessem bonecos e não vidas, os que não sentem os cadáveres porque, para eles, os números são inertes. Estes são muitos e causam vergonha e horror. Mereceriam também uma coluna especial, sem dúvida. A toda essa gente que diz que o mundo será melhor depois do coronavírus, recomendo: “Meu amigo, olhe à sua volta”. Vamos sobreviver e isso está bom demais. Detesto o tipo de sujeito que dá uma de coach em momentos de tragédia coletiva. “Vai ser bom para a gente”, “temos de nos reinventar”, “vamos sair mais fortalecidos”. Perdão? Fale isso olhos nos olhos com quem enterrou um pai ou uma esposa. Fale isso olhos nos olhos com quem perdeu o trabalho.

ESPERO 2021 COM UM MISTO DE FÉ E ANGÚSTIA

Este também foi o ano da minha maternidade. Mateo nasceu no meio da pandemia. É a incessante continuidade do universo, uns morrem, outros nascem. Não há nada mais preciso nem mais eterno do que esta verdade. Ele chegou e mudou tudo, sem pedir permissão. O mundo perderia seu sentido sem as suas­ gargalhadas. Mas a maternidade nada tem de romântico. Eu me sinto permanentemente extenuada. Detesto quando alguns chamam as mães de guerreiras, como se isso fosse uma virtude ou algo a comemorar. A maternidade não deveria ser uma guerra. A maternidade deveria estar protegida, amparada, por um sistema despatriarcalizado que olhasse a mãe e a criança desde o cuidado e não desde o machismo ou o abandono. Obrigada também a todos aqueles que foram parceiros, aceitaram as muitas limitações que esta sobrecarga impõe. Teve muita gente carinhosa e gentil, mas outros agiram de forma desrespeitosa em relação ao meu cansaço materno, tentando impor ritmos impraticáveis para mim e fazendo ostensiva uma insensibilidade que me escandaliza. A estes, aprendam a ser mais humanos. Uma mãe não precisa de palavras bonitas nem de emojis de beijinhos. Precisa de ajuda e compreensão.

Este também foi o ano de Boulos, do Guilherme. A ele devo agradecer muito. Eu, que pesquiso política, estava, como muitos de vocês, num estado de agrura e decepção profunda. O golpe e depois a vitória de Bolsonaro foram desapiedados. Estes anos foram politicamente inclementes para aqueles que pensam a democracia como construção coletiva de um presente e de um futuro. Foram devastadores. A candidatura de Boulos fez ressurgir algo imprescindível na política que tínhamos perdido, o tesão, a esperança, o sorriso. Por tudo isso, que é muito, eu lhe agradeço e agradeço a todos os que estiveram juntos, construindo essa candidatura que nos trouxe de volta uma política que nos tinha sido roubada.

E por aí se aproxima 2021. Eu recebo o próximo ano com um misto de fé, mas também de angústia. Fé na ciência, na esperança de que ela nos devolva as nossas vidas e nos livre da doença, do monstro. Fé na política, que talvez aos poucos comece a ser recuperada e nos faça capazes de começar a construir o caminho de um Brasil sem o outro monstro, sem Bolsonaro. Pensando melhor, minha fé é bem maior do que a minha angústia. Sou otimista por natureza, por definição, está escrito na minha genética. Eu não sou de deuses, nem de altares, nem de livros que se dizem sagrados, mas tenho uma fé imensa no futuro. Olho para essas meninas de 15 anos que se dizem orgulhosamente feministas, para esses jovens envolvidos com entusiasmo e paixão na campanha de Boulos, para essas mulheres negras que estão ocupando a política com a força de uma placa tectônica em movimento, para meus alunos que, mesmo numa situação pandêmica deprimente, têm vontade de aprender e penso, vamos.

Que venha 2021 e comecemos a derrotar os monstros. Desejo que 2021 seja um ano de felicidade ou, ao menos, um ano em que comecemos a reconstruir a nossa felicidade, a que merecemos, a que perdemos, mas que retomaremos.

Publicado na edição n.º1138 de CartaCapital, de 30 de dezembro de 2020

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