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Brasil deve dizer em alto e bom som que não ignora morticínio em Gaza

Em carta a chanceler, Celso Lafer se contrapõe ao legado de Hannah Arendt e deixa de lado o rigor teórico que caracterizou o seu pensamento

Ataque de Israel em Gaza após o fim da trégua no conflito com o Hamas. Foto: John MACDOUGALL / AFP
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Hannah Arendt, filósofa e teórica política conhecida por suas obras sobre totalitarismo e autoridade, nos legou um corpo de análise sobre a natureza do poder e a violência. Se estivesse entre nós, certamente abordaria o conflito palestino-israelense dando ênfase à complexidade das relações de poder, à importância do diálogo político e à necessidade de reconhecer a humanidade de todas as partes envolvidas. Provavelmente destacaria a importância de entender as raízes históricas para a coexistência pacífica e o respeito mútuo.

É curioso notar que Celso Lafer, o mais notório de seus discípulos no Brasil e ex-chanceler – ao endereçar carta a um ex-subordinado, o atual ministro das Relações Exteriores Mauro Vieira, com o objetivo de atacar o apoio brasileiro à iniciativa da África do Sul junto à Corte Internacional de Justiça (CIJ) – tenha se distanciado e se contraposto frontalmente ao legado da filósofa e historiadora norte-americana, deixando de lado o rigor teórico que caracterizou o seu pensamento.

O ex-ministro acusa a África do Sul – o país que derrotou o odiento regime do Apartheid – de encobrir antissemitismo. Ora, os antissemitas são pessoas execráveis que discriminam judeus. Nesse caso a expressão está sendo corrompida semanticamente para se tornar arma de judeus contra críticas feitas às ações do governo de Israel. Neste sentido, acusar a África do Sul de antissemitismo sem apresentar dados que demonstrem isso é, no mínimo, um grosso desprezo à verossimilhança. Até porque o sentido da ação sul-africana passa longe do objeto de ataque do ex-ministro. Nas 84 páginas da peça de acusação não se encontra nenhuma referência que justifique o ataque — absolutamente nada.

A sustentação oral sul-africana, transmitida ao vivo mundialmente e disponível no Youtube, deplora inequivocamente o atentado do Hamas contra Israel em 7 de outubro. Qual seria então a fonte ou a origem da repetição fastidiosa por Lafer de uma acusação improcedente? O peso da história? O subjetivismo da condição humana? Fatores como este são compreensíveis, afinal, somos humanos e objetos da história. Contudo, se voltarmos a Arendt, o rigor e a independência analítica devem prevalecer na leitura crítica dos processos históricos.

Se a África do Sul não é antissemita e não tem contas a prestar nesse sentido, ela está mais à vontade — e não menos — para apontar os fatos e a dimensão da tragédia em Gaza depois de três meses de bombardeios indiscriminados que levaram à remoção de 90% da população, à destruição de 85% dos prédios e, mais grave, à morte de 10 mil crianças até o momento. Esses dados são também corroborados por um eminente pesquisador especializado no estudo de genocídios, professor da Brown University, Omer Bartov (ele próprio israelense), que não tem fugido do dever da neutralidade. Tão logo ficou clara a forma de guerra proposta por Israel, ele a tem qualificado como potencial genocídio. Depois da sustentação acusatória na Corte Internacional, ele a considerou adequada, detalhada e, em suas palavras, “difícil de desprovar”.

A peça apresentada pela África do Sul inicia pela proposta de um acordo de paz pelo qual dois Estados autônomos devem ser reconhecidos conforme os acordos de 1967. Ou seja, não há absolutamente nada de parte da iniciativa sul-africana que questione o direito legítimo de Israel de existir. Tampouco o direito de autodefesa de Israel é posto em dúvida. O que, sim, também fica claro no documento é que o direito de Israel existir não se estende ao direito de seu governo exterminar a população civil palestina.

Neste sentido o documento é claro, vigoroso e justificado com indicações de evidências de crimes diversos. Como âncora de sua manifestação, a África do Sul percorre os termos da Quarta Convenção de Genebra que qualificam “atos ou intenções genocidas, cometidos ou intencionados”. Seguem-se dezenas de páginas com evidências de violação direta à lei vigente pelo atual governo de Israel.

Em essência, pode-se dizer que o documento sul-africano visa conter danos como primeiro objetivo. A apuração de responsabilidades é o meio, talvez o único disponível pacificamente. Neste sentido, ao contrário do que infere a carta de Lafer, o acatamento pela Corte Internacional de Justiça da ação da África do Sul pode, isso sim, preservar a dignidade de Israel perante a história, além de vidas inocentes em Gaza.

Mas o ex-ministro não encerra seu ataque pela ação da África do Sul. Logo volta-se contra o governo brasileiro, invocando nossa isenção nas relações internacionais e indicando uma violação de princípios da “política jurídica externa” brasileira. Isso, sob condições plausíveis e vindo de um ex-chanceler invocando o interesse brasileiro, deve ser tratado com respeito. Nesse caso, contudo, carece de contexto e viola, justamente, o princípio da isenção. Oposta à omissão, a isenção brasileira sempre foi resultado de nossa tradição pacifista, de altivez nas relações internacionais e de vocação para a construção de pontes com todos os espaços de relacionamento onde convenha nossa presença.

É verdade que o Brasil é respeitado por sua isenção. Mas nossa isenção — valorizada por Osvaldo Aranha como presidente da Assembleia-Geral da ONU que recomendou o Plano de Partilha da Palestina em novembro de 1947 — nunca foi tímida. Nossas 80 missões de paz, inclusive em Gaza entre 1957-67, são prova da vocação brasileira para se fazer relevante em temas sensíveis. Nossos interesses permanentes estão entrelaçados com o ideal de paz e, como decorrência, somos contrários à eliminação de civis por forças militares, notadamente em situações de assimetria de poder e desproporção do custo em vidas humanas. Nesse sentido, o Direito deverá sempre materializar-se como expressão da vontade humana, não o contrário, como quer o ex-chanceler, ao buscar limitar a posição do Brasil a uma suposta doutrina jurídica externa.

O Brasil não tem passivos geopolíticos e ostenta autoridade moral para ser um colaborador relevante no esforço humanitário, no curtíssimo prazo, e pela paz permanente, em seguida. O texto de Lafer, nesse sentido, fica aquém da tradição brasileira ao ater-se à defesa insistente de uma parte no contencioso e não ao interesse brasileiro.

Genocídio e limpeza étnica são crimes bárbaros já cometidos contra o povo judeu. Por si, esses precedentes justificam que qualquer cidadão invoque aquelas memórias para repudiar a gravíssima acusação agora sofrida por Israel. Mas uma sociedade que sofreu genocídio não recebe licença automática para agora transformar-se em perpetradora, quando, no quadro de seu legítimo direito de autodefesa, nitidamente extrapola fronteiras de qualquer parâmetro de razoabilidade.

Quando o que está sob os olhos da humanidade é a eliminação de dezenas de milhares de inocentes, o ataque de Lafer — ou de qualquer mortal — à acusação da África do Sul demanda evidências, cobra a apresentação de fatos indesmentíveis que corroborem sua pretensão. Isso a carta dele não foi capaz de fazer.

Com a história milenar de perseguições que se abateram sobre a comunidade judaica, é compreensível seu sofrimento exacerbado com o atentado de outubro. Impossivel que aquele evento não evoque os pogroms e o holocausto e aumente o sentimento de vulnerabilidade numa região instável do mundo. É inteiramente compreensível que haja reação indignada àquele assalto selvagem. Israel é o símbolo do soerguimento bem-sucedido de um povo vítima da pior atrocidade já cometida contra uma população indefesa. É difícil para um judeu ver seu Estado como réu, subitamente acusado de perpetrar crimes mórbidos e em larga escala. É dolorosa essa admissão por judeus. E é dificil, se não impossível, para um não-judeu se colocar no lugar de um e entender a inseguranca que essa comunidade passou a partir de 7 de outubro.

Por outro lado, é dever moral do mundo civilizado reconhecer que, neste momento, o sofrimento mais doloroso recai sobre as vítimas dos crimes imputados a Israel.

Para o Brasil, segue vivo o dever de promover a paz, o respeito à vida e a defesa dos princípios de justiça contidos na ação da África do Sul. A ocasião enseja também a valorização atualizada de nossa política externa, com ênfase no respeito à vida das comunidades israelense e palestina. Por fim, diante do tenebroso conflito em Gaza, a carta de Lafer deve servir como boa provocação para o enriquecimento do debate em torno dos valores humanitários que nos configuram como uma nação.

Já passou da hora de o Brasil dizer em alto e bom som que não contemporiza com morticínio de crianças, que não aceita justificativas para crimes premeditados contra indefesos, sejam civis judeus ou crianças palestinas. Pela mesma régua, tampouco tolera terrorismo em qualquer forma ou padrão.


(Suas opiniões não refletem necessariamente a posição das instituições a que pertencem.)

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