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América para quem?

Rafael R. Ioris, professor da Universidade de Denver e Pesquisador do INCT-INEU, analisa resultado das eleições nos EUA

EUA
Comemoração em Washington pela vitória de Joe Biden. Foto: Samuel Coum/Getty Images/AFP Comemoração em Washington pela vitória de Joe Biden. Foto: Samuel Coum/Getty Images/AFP
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Rafael R. Ioris*

Se como modelo de realização de eleições os Estados Unidos não seriam um bom candidato, como fenômeno midiático, ninguém está à altura. O mundo inteiro esteve ligado nas telas das televisões ao longo de cinco longos dias, acompanhando o escrutínio da eleição presidencial mais relevante do mundo até ficarmos, finalmente, sabendo que Trump foi derrotado na sua tentativa de reeleição, algo que normalmente não acontece em um país que tende a reeleger seus presidentes. Mas em meio às celebrações da vitória de Joe Biden, do Partido Democrata, precisamos lembrar que o trumpismo saiu muito vivo dessa eleição e que, mesmo derrotado, 70 milhões de norte-americanos optaram por manter na presidência da maior potência militar o personagem político mais bizarro da sua história.

Muitos esperavam que a eleição de 2020 poderia ter dado um mandato claro a um desses lados. Mas ela se revelou, de fato, como uma experiência ambígua já que a imagem que sai das urnas é a de um país profundamente dividido, onde os dois lados do espectro político permanecem aguerridos para defender sua posição e que continuam vendo seu oponente como uma ameaça direta ao seu modo de vida.

Da mesma forma, o inepto e anacrônico processo eleitoral norte-americano, que muitos esperavam colapsar, acabou funcionando dentro da sua normalidade, e os níveis de violência esperado não se materializaram. Seria possível, mesmo, afirmar que a democracia norte-americana provou sua vitalidade. Embora, infelizmente, tal diagnóstico tenderá a ser visto, por muitos, como demonstração de que as instituições políticas do país – eleições realizadas pelos estados, sem supervisão federal, colégio eleitoral e ausência de órgãos não partidários de controle do processo eleitoral, todas que remetem ao século XVIII – não precisariam ser atualizadas para os dias de hoje.

Cabe ressaltar também, que o Partido Republicano, mesmo tendo perdido a Casa Branca, permanece sendo uma das forças políticas mais decisivas do país, tendo inclusive aumentado sua base, tanto do ponto de vista de votos, como entre diferentes segmentos da população. Por sua vez, os democratas, mesmo na vitória, saem das urnas com a sensação de que a nação não está tão alinhada com sua plataforma eleitoral já que não conseguiram vencer, de maneira clara e definitiva, o político presidindo uma das maiores crises sanitárias e econômicas jamais vistas.

De fato, Trump sai dessa eleição com mais votos do que obteve em sua vitória em 2016, e o que poderíamos chamar de trumpismo é hoje a maior força política do país. Além disso, ainda que não saibamos todos os desdobramentos da saída de Trump da presidência, com ou sem ele na liderança, a narrativa trumpista de que a América está sendo destruída por aqueles que “não pertencem” a ela vai continuar influente no Partido Republicano e sendo torpedeada nas rádios AM ao redor do país, assim como no canal de TV Fox News, verdadeiros porta-vozes de todo tipo de teoria conspiratória aceitas pela base mais aguerrida do partido.

Que país os EUA querem ser nas próximas décadas? Mais diverso e aberto para o mundo ou uma nação mais xenofóbica?

Fraturas importantes entre o suposto eleitorado naturalmente democrata também foram reveladas nesse eleição. A narrativa de que Biden seria um socialista radical que iria destruir a “terra da liberdade”, minimizada como absurda por tantos, provou-se mais eficiente do que se esperava, especialmente em segmentos-chave do partido de Biden, como entre comunidades latinas na Flórida. E mesmo os afro-americanos, embora ainda majoritariamente democratas, também vieram a oferecer mais votos aos republicanos do que em 2016. E mais, com um governo dividido entre democratas e republicanos, com as Cortes Federais, em especial, a Suprema Corte, dominada por juízes indicados por Trump, Biden tenderá a ser um presidente fraco, que terá que negociar muito para implementar, provavelmente, uma agenda mais moderada do que sua base gostaria.

Se tivesse obtido um mandato claro, o novo presidente poderia (e deveria) tentar repactuar o pacto social norte-americano que se encontra há tempos numa encruzilhada enorme. Que país os EUA querem ser nas próximas décadas? Um país mais diverso e mais aberto para o mundo ou uma nação mais xenofóbica? Uma sociedade mais integrada racialmente ou mais segregada entre seus grupos raciais? Uma economia mais inclusiva e com melhores níveis de um estado bem-estar social ou uma sociedade mais estratificada em termos econômicos e de classe? Um país mais cosmopolita, interessado e engajado no mundo ou um estado de viés isolacionista?

A eleição norte-americana que acaba de ser concluída não conseguiu dar uma resposta sobre onde os norte-americanos querem ir. E mesmo em meio a uma economia em crise e sob o peso de quase 250 mil mortes (grande parte delas evitáveis!), metade do país se manteve fiel ao político mais divisionista, autoritário, racista e misógino da história moderna do país. Nesse sentido, apesar da enorme importância da derrota de Trump, o que poderia ter sido uma eleição histórica na resolução dos rumos do país mais influente do mundo parece estar sendo definida pela postergação da definição do curso do próximos anos.

E enquanto os EUA permanecem neste compasso de espera, enormes desafios se avolumam no cenário internacional. A imagem diplomática do país foi enormemente prejudicada sob Trump e haverá que se trabalhar muito para sua reconstrução. Sim, Biden poderá contar com a boa vontade de muitos, mas também enfrentará um cenário definido por grandes rivalidades, especialmente com a China, e urgências, como a questão climática global.

As dificuldades que os EUA vêm enfrentando nos últimos anos (erosão da classe média, acirramento dos conflitos raciais, deslegitimação das instituições políticas, etc.) tenderão portante a continuar, ainda que a chegada de Biden ao poder representará, sem dúvida, um retorno à normalidade institucional.

E se Biden provavelmente não tiver condições de ser um novo Roosevelt e implementar um novo New Deal (muito necessário na atual conjuntura do país), talvez seja melhor esperar que ele, com sorte, consiga, ser um novo Carter, alguém que trouxe de volta decência e razoabilidade para a Casa Branca. A ver!

* Rafael R. Ioris, professor da Universidade de Denver e Pesquisador do INCT-INEU

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