Artigo

O golpe de 2016 e as saídas para as tragédias do presente

O uso do conceito de golpe para tratar dos eventos de 2016 ilumina aspectos relevantes não apenas para melhor compreender o período, mas para reconstruir o movimento que levou à eleição de Bolsonaro

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT), junto a Michel Temer (MDB). Foto: Lula Marques/Agência PT Créditos: Lula Marques/Agência PT
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A disputa política também se faz por meio de conceitos, gostem ou não os que a analisam. Todos os que defendem a existência de um único sentido possível para as palavras, ou ignoram o modo como as disputas em torno do poder transcorrem ou simpatizam com ordens autoritárias – as únicas que podem impor um significado fixo para o repertório político. 

As ponderações do parágrafo acima fazem-se necessárias para lidar com muitas das análises sobre a deposição de Dilma Rousseff da Presidência. Também são importantes para o principal argumento deste texto: o uso do conceito de golpe para tratar dos eventos de 2016 ilumina aspectos relevantes não apenas para melhor compreender o período, mas para reconstruir o movimento que levou à eleição de Jair Bolsonaro e a todos os seus atuais desdobramentos.

O que ocorreu em 2016 foi um golpe pois o objetivo da coalizão que derrubou o governo Dilma não era apenas trocar a presidente ou o partido do governo, mas mudar o regime político brasileiro a partir de um processo que não envolvia a direta manifestação de vontade dos cidadãos brasileiros ou a construção de uma nova legitimidade democrática.

A ideia de que a justificativa do impedimento estava no “conjunto da obra”, ou na “corrupção generalizada” – muitas vezes deixada de lado a menção aos supostos “crimes de responsabilidade” – expunha como a insatisfação com os resultados eleitorais das eleições presidenciais fomentava uma recusa radical à Nova República. O sucesso eleitoral petista transformou-se em sintoma das patologias do sistema político brasileiro.  

Temer liderou a radicalização da direita brasileira hegemônica no pós-88 e construiu as condições para o crescimento, social e eleitoral, da ultradireita

Seja por meio de uma nova constituição ou da profunda transformação dos fundamentos da Carta de 88, os principais protagonistas de 2016 expunham com muita clareza a pretensão de tomar o impeachment como um impulso para refundar a Nova República, expurgando-a dos elementos identificados à esquerda.

Como disse uma famosa gravação, o movimento passaria por um “grande acordo nacional” que limitaria a Lava Jato à criminalização da esquerda e colocaria o então vice-presidente como fiador de um novo momento.

A vitória de Bolsonaro passa, em boa medida, pelo fracasso deste plano, que no objetivo de excluir a esquerda do jogo político legítimo acabou por retirar a legitimidade de todo o sistema político. 

Por todos os objetivos e meios acima citados, não me parece exagerado pensar no processo como um golpe. Não tivemos uma tomada armada do centro do poder, é verdade. Permanecem, todavia, a mudança radical de regime “por cima” com o protagonismo de um ocupante de altos postos do Estado, assim como o uso de meios que na prática eram excepcionais – mesmo que formalmente tentassem aparentar o contrário.

Em sua primeira viagem internacional após a posse, Lula chamou duas vezes a derrubada de Dilma de ‘golpe’ – a primeira na Argentina, a segunda, no Uruguai (Foto: Luis ROBAYO / AFP)

É possível encontrar nas várias e diversas formulações teóricas clássicas e contemporâneas em torno do conceito de golpe (construídas por autores tão distintos quanto Naudé, Marx ou Luttwak) todos estes elementos. 

Há margem para não classificar o processo como um golpe? Certamente, mas isso afeta a interpretação do processo histórico transcorrido entre o final de 2014 (quando Aécio Neves colocou em dúvida a lisura das urnas) e os dias atuais.

O governo Temer esboça os fundamentos de um novo regime político, que concilia a institucionalidade autoritária da Ditadura Civil-Militar, formulada por autores como Miguel Reale, ao ultraliberalismo construído no processo de oposição aos governos petistas. Alguns dos protagonistas da coalizão bolsonarista, que tinha na oposição à democracia um dos pontos de coesão, ganharam o centro da cena política e encontraram seus lugares institucionais no governo anterior. 

Foi Temer quem voltou a colocar militares em postos políticos centrais do Estado brasileiro e fortaleceu o velho imaginário das Forças Armadas como um poder moderador da República. Particularmente significativas foram a nomeação de um militar para o Ministério da Defesa, rompendo com a tradição da Nova República; a construção de um setor de inteligência construído a partir dos desejos do pensamento militar, sob comando de Sérgio Etchegoyen; e a nomeação de um militar, o futuro candidato a vice-presidente Braga Netto, como interventor no Rio de Janeiro.

É, no mínimo, superficial recusar o uso do termo ‘golpe’ a partir de definições puramente normativas

Temer também foi personagem central na proposição de reformas de forte inspiração no liberalismo econômico, como a reforma trabalhista e a liberação da terceirização na atividade fim, e antecipou parte da linha ultraliberal futuramente representada, no governo Bolsonaro por Paulo Guedes.

Por fim, o emedebista fortaleceu um discurso de tintas conservadoras e neoconservadoras nos campos da educação e dos direitos individuais. Por sugestão da bancada evangélica, o Ministério da Educação do seu governo excluiu da base nacional curricular as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual”. Afinado com a bancada ruralista e com os militares, ele também enfraqueceu as pautas ambientais e indígenas, retirando as exigências ambientais para regularização fundiária, na chamada “lei da grilagem”, e defendendo através da AGU um novo marco temporal para as terras indígenas, futuramente chancelado pelo STF. 

Temer liderou a radicalização da direita brasileira hegemônica no pós-1988 e construiu as condições para o crescimento, social e eleitoral, da ultradireita. Não apenas sua coalizão tem profundas semelhanças com a do governo que o sucedeu, mas também antecipa parte das ideias posteriormente abraçadas, de forma mais virulenta, por Bolsonaro.

Há, claro, diferenças significativas entre os dois governos, como a ausência de uma linguagem política fascista ou a apologia ao extermínio dos seus adversários políticos. Em muitos sentidos, porém, é possível afirmar que parte da construção do campo da ultradireita no Brasil passa, em parte, pela intensificação do repertório político das direitas hegemônicas do pós-1988.

Incapaz de construir uma alternativa política capaz de ganhar eleições, ela acabou derrotada pela retórica mais extrema de Bolsonaro, mas não apenas compartilha de vários pontos em comum com o primeiro, como registrou um bom número de adesões à nova coalizão.

O ano de 2016 foi um central para a normalização de discursos e práticas autoritárias, que alcançaram versões mais trágicas posteriormente, mas ali construíram parte dos seus alicerces. O processo de impedimento avariou profundamente a legitimidade política da Nova República, a qual ainda se busca reconstruir.

Outros conceitos são válidos para tratar do evento? Sem dúvida. É no mínimo superficial, contudo, recusar seu uso a partir de definições puramente normativas – que não apenas ignoram como seu enquadramento está em perfeita consonância com parte do cânone da Ciência Política, como demonstram desconhecer o caráter polêmico dos conceitos políticos. O fato de que uma expressão possa tratar de momentos profundamente distintos, como o 1º de abril de 1964 e o 17 de abril de 2016, apenas traz mais uma dimensão do mundo político: sua historicidade.

Soam quase irônicos os clamores pela superação do passado recente quando lidamos com os trágicos efeitos de uma política de esquecimento ante a Ditadura Civil-Militar. Não clamo por uma perseguição dos entusiastas ou apoiadores de 2016, mas, sem dúvida, a construção pública de um debate político sobre o tema tem importantes consequências não apenas para o passado, mas para o futuro.

Demonstrar a trágica experiência da deposição de Dilma é, por exemplo, uma forma de combater a retórica de ausência de legitimidade do governo Lula – já corriqueira mesmo com poucos dias de governo.    

Por fim, não é possível esquecer que vivemos tempos em muitos sentidos excepcionais, como o 8 de janeiro eloquentemente demonstrou. Pensar que o governo pode apenas retomar velhas fórmulas de sucesso do presidencialismo de coalizão de 10 anos atrás é, no mínimo, desconhecer este cenário profundamente distinto.

Neste sentido, lidar com os caminhos que nos levaram ao atual momento pode ser um modo de encontrar saídas para as tragédias do presente.

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