Política
Como o governo Lula ‘virou o jogo’ no debate do PL Antifacção na Câmara
Entre erros da oposição, articulação de Gleisi Hoffmann e desgaste do relator, o Planalto recupera o controle de uma discussão que parecia perdida
Quando o debate sobre o PL Antifacção desembarcou na Câmara dos Deputados, a expectativa em Brasília era de que o governo seria atropelado. A sucessão de crises na segurança pública – da operação policial no Rio de Janeiro ao comentário de Lula sobre traficantes – deixara o Planalto na defensiva e a oposição animada. A direita acreditava ter ali uma oportunidade de impor agenda, narrativa e protagonismo.
O movimento que parecia garantido, no entanto, se desfez em poucos dias. E não por força de uma grande ofensiva inicial do governo e sim pelo racha criado na própria direita.
O ponto de virada começou com uma manobra que, no papel, parecia inteligente para a oposição: entregar a relatoria a Guilherme Derrite (PP-SP), aliado de Tarcísio de Freitas (Republicanos), pré-candidato ao Senado por São Paulo e nome de referência entre bolsonaristas ligados à pauta da segurança. A articulação, centrada em Hugo Motta (Republicanos-PB), daria à direita o poder de moldar o projeto enviado pelo governo e transformá-lo em vitrine.
A ideia era simples. Puxar o texto para a agenda da direita, atribuir fragilidades da segurança ao governo e obrigar o Planalto a negociar em posição auxiliar.
O plano, porém, começou a ruir logo na entrega da primeira versão do relatório. O texto veio com problemas técnicos, críticas de especialistas e, sobretudo, uma cláusula que mudava a lógica original do projeto. A redução das atribuições da Polícia Federal no combate às facções foi a gota d’água. Foi justamente aí que a engrenagem da direita se desfez.
A medida, vista como deslocada e sem justificativa jurídica sólida, atraiu reações negativas não apenas da base governista, mas também de setores tradicionalmente simpáticos às pautas de segurança defendidas pela oposição.
Em vez de encurralar o governo, a direita criou uma frente de contestação que uniu PF, Ministério Público, juristas, parte dos partidos de centro e até deputados que haviam comemorado a escolha de Derrite como relator. O movimento colocou a base de Lula em uma posição inesperadamente confortável: a de defensora da PF e da estrutura institucional de combate ao crime organizado.
Títere. O presidente da Câmara “surrupiou” o projeto do governo Lula e escolheu o preposto do governador paulista Tarcísio de Freitas para o serviço – Imagem: Lula Marques/Agência Brasil
A derrota de Derrite
Ao perceber o desgaste da oposição, o governo ajustou rapidamente a rota. A narrativa de que o projeto original fora “desfigurado” ganhou corpo e, dessa vez, com lastro político. O Planalto passou a difundir a ideia de que a direita estava tentando aparelhar a segurança pública, interferindo diretamente na função da PF e enfraquecendo a política nacional de combate às facções, algo que exigiria coordenação federal.
Aos poucos, a disputa deixou de ser entre segurança e “leniência do governo”, como a oposição havia planejado. A narrativa passou a girar em torno de institucionalidade versus incerteza. O Planalto, nesse ponto, deixou de ser a vidraça e passou a ser a pedra.
Membros da base governista apontam também o papel central de Gleisi Hoffmann, a ministra das Relações Institucionais. Discreta na primeira fase do embate, a ministra, assim que acionada, tomou as rédeas das negociações e passou a atuar fortemente após o racha na direita. Articulou rápida posição unificada da base do governo e coordenou os ajustes do texto desejados pelo Executivo.
A reorganização da base forçou a pressão pela preservação da estrutura original do projeto e ajudou a construir um discurso unificado na Câmara, de que qualquer concessão seria possível, menos abrir mão do papel da PF. Ao mesmo tempo, Gleisi procurou diretamente líderes partidários para garantir que o governo não fosse visto como “obstrucionista”, mas como defensor de um texto consistente.
A cada nova rodada de críticas, Derrite recuou. Já são quatro versões do relatório, e a promessa da quinta versão para terça-feira 18 veio acompanhada de expectativa de votação.
Politicamente, porém, o estrago já estava feito na oposição. O relator deixou de ser símbolo de força e se tornou exemplo de improviso, a direita perdeu coordenação interna e o governo recuperou a narrativa. Na Câmara, a leitura é a de que mesmo que o texto final ainda traga elementos defendidos por setores bolsonaristas, a mão do governo voltou a ser a que marca o ritmo da negociação.
O que esperar da semana que vem
A entrega da quinta versão do relatório será determinante. A expectativa no Congresso é de que Derrite faça novos recuos para reaproximar o texto da proposta original do Executivo – um cenário impensável poucos dias atrás.
Mesmo que a votação de terça seja disputada, a narrativa já mudou de lado. No balanço final, o governo Lula encontrou no PL Antifacção algo raro: um debate de segurança pública em que, contra as apostas iniciais, foi a oposição que se atrapalhou e o Planalto que saiu por cima.
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