Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
O bafo das ruas e das redes no cangote do Congresso
Entre a pressão popular e a barganha parlamentar, avançam debates sobre isenção do IR até R$ 5 mil, redução da jornada de trabalho e taxação dos mais ricos


O que um coelhinho de paraquedas ao som de Racionais MC’s, um peixe falante e os Power Rangers têm em comum?
São todos memes usados pelo governo Lula para conquistar apoio popular e pressionar o Congresso a aprovar medidas que podem mudar a vida de milhões: isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais, o fim da escala de trabalho 6×1 e a taxação dos super-ricos.
Desde a chegada de Sidônio Palmeira à Secretaria de Comunicação Social (Secom), o governo aposta na linguagem viral da internet. A estratégia ganhou força na última semana, com a pressão que derrubou a PEC da Blindagem. Coelhinhos, gatinhos e peixinhos se somaram ao bafo das ruas para pressionar os parlamentares em Brasília.
Deputados e senadores do Centrão perceberam que a correlação de forças começou a mudar. A pressão popular, antes da extrema-direita, agora também vem da esquerda e de setores democráticos.
O governo vem usando essa pressão para empurrar o Congresso a pautar o que realmente importa. A comunicação divertida transforma pautas de justiça social em temas quase inquestionáveis usando a linguagem dos memes.
Meme publicado nas contas oficiais do governo federal. Foto: Reprodução
Mas nem os Power Rangers conseguiriam sozinhos lidar com o Centrão. Após o desgaste com a rejeição da PEC da Blindagem, parte do maior grupo do Congresso tenta atrelar a isenção do Imposto de Renda a um projeto que alivie os envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Em outras palavras: chantageiam o governo com uma medida popular para aprovar o perdão impopular aos golpistas.
A nova manobra atende por PL da Dosimetria, encampado por Paulinho da Força (Solidariedade-SP). A proposta quer reduzir penas dos condenados pelos atos de 8 de Janeiro. Em vez de perdão total, uma anistia parcial. Paulinho tenta vender como ajuste técnico, mas o efeito é o mesmo: aliviar quem atentou contra a democracia.
O projeto tem articulação em pelo menos oito partidos, mas enfrenta resistência. Governistas questionam por que suavizar penas de Bolsonaro e aliados. Bolsonaristas preferem a anistia total.
Enquanto isso, a tramitação da isenção do IR avança em duas frentes que expõem outra disputa: o deputado Arthur Lira (PP) e o senador Renan Calheiros (MDB), ambos de Alagoas.
Na Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) marcou para quarta (1º) a votação do texto conduzido por Lira, que amplia a faixa de isenção até 5 mil reais. É esse texto que o Centrão tenta atrelar à anistia. Lira fala em 10 milhões de beneficiados, mas evita discutir as fontes de compensação.
No Senado, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) aprovou projeto alternativo relatado por Renan Calheiros. Também amplia a isenção e explicita as fontes: tributação de dividendos, remessas de lucros ao exterior e rendas altas. Calheiros critica a versão de Lira justamente por excluir esses pilares.
A disputa é tributária, mas é sobretudo política. Em Alagoas, Renan e Lira mantêm uma rivalidade antiga. Oficialmente, o Planalto apoia o texto da Câmara, mas nos bastidores vê em Calheiros uma pressão útil para acelerar o outro lado.
Sentindo o apoio das ruas, o governo subiu o tom. Desde o ato de 21 de setembro, intensificou campanhas digitais sobre a isenção e o fim da escala 6×1. Em vídeos e cards cada vez mais frequentes, comparou essas medidas a conquistas históricas, como férias remuneradas e 13º salário.
Estudo do Ministério da Fazenda mostra que aumentar a faixa de corte sem cobrar mais dos de cima pode até ampliar a desigualdade. Só faz sentido se vier acompanhado da taxação dos que ganham mais de 50 mil reais por mês e seguem quase intocados pelo sistema.
Não surpreende a resistência no Congresso. Mais da metade dos deputados são milionários, e cerca de 70% são brancos, segundo levantamento do Observatório da Branquitude publicado pelo site Alma Preta. Não é difícil entender por que a estrutura tributária continua penalizando pobres, mulheres e população negra.
Ao lado da questão tributária, o fim da escala 6×1 também ganha fôlego. A PEC apresentada por Erika Hilton (PSOL-SP), com 234 assinaturas, propõe uma jornada de 36 horas semanais em quatro dias. O relator, Luiz Gastão (PSD-CE), já prometeu ouvir empresários e trabalhadores antes de apresentar seu parecer. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, avisou em entrevista recente que só haverá avanço com pressão social.
Pressão não falta. O movimento Vida Além do Trabalho (VAT), fundado por Rick Azevedo (PSOL-RJ), nasceu de um desabafo viral no TikTok em 2023, quando ele trabalhava como balconista de farmácia e cumpria a 6×1.
O vídeo deu origem a um movimento que hoje ocupa ruas e redes, organizou plebiscito popular e empurrou o tema para o Congresso. Eleito vereador no Rio de Janeiro, Rick comemorou a derrota da PEC da Blindagem e a tramitação da isenção do IR em suas redes, sempre ligando essas vitórias à luta contra a escala 6×1.
São pautas de impacto direto para o povo, pois representam mais tempo com a família, para estudar e para cuidar da saúde. Além de um sistema tributário que cobra mais de quem tem mais e alivia os de baixo. Juntas compõem um projeto de sociedade que se contrapõe ao modelo de moer gente até a exaustão.
Por isso, atrelar a votação da isenção do IR à anistia soa ainda mais cínico. De um lado, medidas que aliviam milhões. Do outro, uma proposta para aliviar golpistas.
É nesse ambiente que a pressão das ruas pode pesar. Assim como barrou a PEC da Blindagem, pode empurrar o Congresso a discutir o que importa: jornada de trabalho, isenção do imposto, taxação dos super-ricos e fortalecimento da democracia.
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