Roberto Rockmann | Pantagruélicas
Ideias e memórias e de um jornalista apaixonado pelos vinhos e a gastronomia
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Feijoada, quitutes e samba: o retorno do Zicartola?
Mais que restaurante, o espaço de Cartola e Dona Zica foi palco de encontros entre a velha guarda do samba e a nova geração em plena ditadura militar; agora, a casa pode reabrir no centro do Rio, em um outro cenário político e cultural


Deu n´ “O Globo” recentemente: em busca de revitalizar o centro do Rio de Janeiro, um grupo está trabalhando para reabrir o Zicartola no mesmo imóvel da Rua da Carioca, nº 53, onde há 60 anos Cartola e Dona Zica gerenciaram por 20 meses o histórico endereço. Ali se serviam arroz, feijão, farofa, lombo de porco, a célebre feijoada de Dona Zica, quitutes inventivos e sobremesas simples. O cardápio, hoje peça de memória, estampava pratos com um toque a mais: “Linguiça vestida de farofa de couve”, “Peixe na chuva” e até “Fritada de camarão assanhado”.
O Zicartola durou pouco, menos de dois anos, entre 1964 e 1965, mas foi marcante. Ali se reuniram músicos reputados como Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e Ismael Silva, além de nomes da bossa nova, como Nara Leão. Sua abertura coincidiu com a ebulição cultural e política que antecedeu e sucedeu o golpe militar de 1964.
O ambiente era fértil. “Aquela concentração no Zicartola, aquela coisa diária de estar lá, foi, sem dúvida alguma, a razão da existência, tanto do musical Opinião, que estreou em dezembro de 1964, quanto da própria Clementina, que no mesmo dezembro estreou no Teatro Jovem, e depois resultaria no Rosa de Ouro em 1965. Eu diria sempre que mais do que um restaurante, o Zicartola foi aglutinador de um movimento estético-cultural para o Rio de Janeiro”, recordou Hermínio Bello de Carvalho ao historiador Maurício Barros de Castro, autor do livro Zicartola: Política e samba na casa de Cartola e Dona Zica.
Mais que um ponto de encontro, foi o primeiro palco de grandes compositores. Em 1964, foi no Zicartola que Paulinho da Viola tocou em público pela primeira vez. Um dia, o próprio Cartola se aproximou dele e disse: “Paulo, você está vindo aqui, usando seu tempo para tocar e não está ganhando nada. Tome aqui um dinheiro pra “passagem”. Foi a primeira vez que Paulinho recebeu um pagamento pela sua música.
Foi a mesma generosidade, que fez do Zicartola um lugar de acolhimento, o motivo da sua condenação. Cartola era poeta, não administrador. Nunca teve tino para negócios. Já Dona Zica, cozinheira de mão cheia, preferia acolher a cobrar.
Muitos clientes, especialmente da Zona Sul e do meio artístico, comiam, bebiam, pediam fiado e nunca pagavam. O restaurante vivia lotado, mas a caixa registradora raramente emitia o seu tilintar metálico do recebimento.
Em 1980, ano da morte do músico, o jornalista João Máximo resumiu, no Jornal do Brasil, os conflitos. “De certa maneira, o Zicartola foi uma ideia equivocada: intelectuais e jovens da Zona Sul, que ainda ouviam samba de morro com o encantamento das pessoas cultas que de repente encontram um artista primitivo, fizeram do lugar a casa de espetáculos da moda. Era de bom gosto e inteligente ouvir samba no velho sobrado da rua da Carioca. Muitos não pagavam, pediam fiado e deixavam o resto por conta da ingenuidade dos donos.”
O clima político também não ajudou. Com o endurecimento do regime militar, o espaço que reunia estudantes, intelectuais e artistas passou a ser visto com desconfiança. A invasão da juventude da Zona Sul transformou o sobrado em casa da moda, alterou a dinâmica das rodas tradicionais e expôs as tensões entre mundos tão diferentes. Em maio de 1965, com as contas no vermelho e a pressão externa aumentando, o Zicartola fechou as portas para que Cartola fosse consagrado na história da música popular.
Com as contas no vermelho e a pressão externa aumentando, o Zicartola fechou as portas em 1965. Nove anos depois, em 1974, Cartola foi consagrado na história da música popular com um disco inteiro de suas criações, inaugurando clássicos como “Acontece”, “Alvorada” e “O Sol Nascerá”.
Num tempo de refeições apressadas e música solitária em fones de ouvido, a volta do Zicartola lembra que o Brasil se faz à mesa grande e na roda de samba: comendo junto, cantando junto, vivendo junto.
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