Cultura
A palavra, a poética e um país
José Miguel Wisnik propõe, em seu novo livro, uma reflexão muito rigorosa sobre o inconsciente musical de um povo


Um livro sobre música brasileira que começa com um longo ensaio sobre Chopin. Esta não será uma das menores ironias de Viagem do Recado: Música e Literatura, de José Miguel Wisnik. Ela, no entanto, explicita bem o projeto desse escritor a um só tempo rigoroso e surpreendente, que defende duas teses complementares.
Uma das teses tem como ponto de partida a reflexão sobre o lugar da literatura em modernidades periféricas como a nossa, passando pelo problema do estatuto da canção entre nós, da permeabilidade entre a dita alta cultura e a produção popular para terminar na defesa da especificidade do modo de o País pensar a si mesmo servindo-se da articulação singular entre música e literatura.
É nesse momento que encontramos no livro a ideia de o Brasil realizar uma espécie de gaia ciência, para falar como Nietzsche, ou seja, um saber poético-musical afirmativo que implica uma refinada educação sentimental.
Nesse saber, as vicissitudes do País não se resolvem apenas nas estilizações de seus impasses ou na consciência do fracasso de suas tentativas de formação, mas na conciliação entre a palavra do poema – que sempre força os limites da comunicação e do sentido – e a circulação estendida da forma-canção.
Essa primeira tese já daria, por si só, muito o que pensar. A forma com que Wisnik a defende, começando por retornar a Machado de Assis e seus músicos que sonham em compor sinfonias para poucos e acabam sempre por compor polcas e maxixes de sucesso para terminar encontrando Guimarães Rosa e sua natureza que mais parece uma physis da qual a linguagem é extraída ainda em estado bruto, demonstra por que ele é simplesmente o único entre nós que sabe atualmente mobilizar o que a forma ensaio tem de mais profundo e criador.
Como escreveu Adorno, o ensaio guarda essa confiança de quem entra em errância sabendo ser tal errância a forma mais adequada de encontrar relações cuja força explanatória é maior que qualquer construção prévia de totalidades.
No ensaio que dá nome ao volume, Viagem do Recado, por exemplo, começamos pelas minúcias da interpretação de Recado do Morro, de Guimarães Rosa, para de repente sermos levados ao relatório escrito pelo próprio Guimarães, na função de diplomata, sobre a construção de Itaipu.
Em seguida, passamos à antropologia reversa de A Queda do Céu, livro de David Kopenawa e Bruce Albert, para terminarmos em uma mesa de restaurante onde Tom Jobim explica a Bernie Krause como, em sua infância, a floresta e seus sons ainda chegavam às raias da cidade do Rio de Janeiro. Uma escrita que se deixa conduzir dessa forma diz muito sobre o que gaia ciência pode efetivamente significar.
Mas o livro tem ainda uma segunda tese, perseguida com afinco. Ela explica algo da razão de toda essa viagem começar por Chopin. O que interessa a Wisnik é, entre outras coisas, entender como esse músico tão fundamental para a educação sentimental da burguesia – surgido quando o piano se torna o primeiro divã da era moderna – traz uma concepção de música como “uma linguagem funda e sem palavras, ligada intensamente a zonas psíquicas insondáveis e radicalmente avessa aos impulsos programáticos e descritíveis”.
O que Wisnik busca compreender é como nasce essa linguagem avessa à representação que se vincula a um horizonte psíquico e libidinal que mais parece conectar-se à dimensão do que Freud um dia chamará de pensamento primário, com seus deslocamentos, condensações e figurações livres.
Viagem do Recado: Música e Literatura. José Miguel Wisnik. Companhia das Letras (368 págs., 99,90 reais)
É como se dela emergisse algo a violentar os esquemas prévios da imaginação e forçar os limites expressivos do corpo. Não por acaso, contemporâneos de Chopin, como Schumann, viram em sua criação “algo de doentio, de febril, de repulsivo”.
Merece meditação profunda o fato de Chopin sair à procura de um povo explodindo a forma de suas danças, mazurcas, polonaises e de outras manifestações populares. Irrompe-se assim a gramática de seus afetos, fazendo com que marchas militares terminem em danças de salão.
Se Viagem do Recado é tão marcado pelo recurso contínuo e pontual à psicanálise é porque sua segunda tese é sobre de que forma a música, ao procurar por um povo, pode conectar-se aos fluxos libidinais que compõem territórios em contínua mutação. Essa tese é ainda mais surpreendente que a primeira.
Esse inconsciente pulsional a céu aberto Wisnik encontra em Chopin, mas também em Villa-Lobos, quando, ao comentar o Choro nº 10, celebra o: “desrecalque de um fundo vital represado” composto de um aglomerado fusional de revivescências musicais de toda ordem animados por uma “energia não ligada”.
Ele estará também nos brejos de Guimarães Rosa e na liberdade formal da música popular brasileira que, numa canção como A Terceira Margem do Rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, interroga a literatura em posição altiva, invertendo lugares, decompondo familiaridades.
Em momentos assim, a música popular consegue trazer uma “linguagem poética não saturada, em estado nascente, cujo desenvolvimento ainda não se deteve”. Trata-se de maneira original de se contrapor às leituras deficitárias da realidade nacional.
Poderíamos deixar aqui várias perguntas, como o que acontecerá com essa capacidade da a música brasileira não só interpretar um povo em seu ponto de fundo vital represado, mas tentar construir um povo por vir.
Até que ponto essa história ainda é a história de nosso presente? E, se não for, que contradições internas nos levaram para fora desse projeto tão audacioso? Porque talvez seja mesmo essa a função dos belos livros: nos permitir formular questões que nos inquietarão por muito tempo. •
Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A palavra, a poética e um país’
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