Sociedade

‘Igualzinho ao tigrinho’: Paraná inaugura minicassinos chancelados pelo governo Ratinho Jr.

Contrato de dez anos prevê 5 mil máquinas até 2025 e faturamento de R$ 7 bilhões; especialistas veem armadilha de endividamento e lobby atropelando o debate

‘Igualzinho ao tigrinho’: Paraná inaugura minicassinos chancelados pelo governo Ratinho Jr.
‘Igualzinho ao tigrinho’: Paraná inaugura minicassinos chancelados pelo governo Ratinho Jr.
Betshops: empresa instala onze videoloterias no Paraná. Foto: Reprodução/Redes Sociais
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No balcão de um folclórico bar de Curitiba, um ex‑deputado ostenta há décadas cartazes pedindo a reabertura dos cassinos no Brasil. Mas Pedro Lauro, o dono do empreendimento que leva as iniciais de seu nome não precisa esperar por Brasília: basta caminhar alguns quarteirões, até a Boca Maldita, para ver o controverso pedido parcialmente atendido.

No térreo do Edifício Tijucas, um dos principais da cidade, funciona uma das 11 “betshops” da Apostou, marca que opera videoloterias no Paraná graças a uma concessão de dez anos firmada com o governo estadual em 2024. CartaCapital esteve em três delas.

A estética emula, em versão baixo orçamento, um cassino de Las Vegas. A semelhança é tamanha que, há pouco mais de um mês, policiais militares estiveram em uma loja da Apostou achando tratar‑se de cassino ilegal. Saíram de mãos vazias, já que o aval vinha do próprio governo estadual.

Por dentro das ‘betshops’

Entre geladeiras abarrotadas de bebidas e canapés, o mundo exterior desaparece sob as janelas escurecidas, apostadores passam horas a fio olhando para as telas brilhantes.

Oficialmente, as principais betshops funcionam das 12h às 0h (22h aos domingos). Extraoficialmente, quem já está dentro pode ficar até as 2h, abastecido por uísque e petiscos. “Fica tudo engordurado”, reclama uma atendente.

O neurofisiologista Marcelo Lima, da UFPR, explica por que as maratonas de apostas turvam a fronteira entre lazer e compulsão. “Quanto mais crônica a exposição a algum jogo como esse, mais adaptado está o cérebro, no sentido de ser menos recrutado racionalmente.”

“Nas primeiras exposições a um determinado jogo, como ‘o tigrinho’, a pessoa vai ter uma ativação dessas áreas conscientes e fazer um raciocínio analítico. A partir do momento que o uso daquele jogo se torna mais crônico, essas áreas começam a ser menos ativadas. A pessoa só reage ao jogo, mas reage quase inconscientemente e se torna meio autômata. A gente vê muito isso com as redes sociais, no fenômeno do scrolling [rolar a tela sem atenção].”

A aposta mínima é de 25 centavos, mas as promessas vão além. “Uma cliente pôs dois reais e levou dois mil na primeira rodada!”, comemorou a atendente. Também há revezes: naquela mesma semana, um habitué perdeu 17 mil reais em 48 horas. “Ele já ganhou bastante também”, minimiza a funcionária.

A Apostou sustenta que vende apenas “raspadinhas virtuais” auditadas pelo padrão internacional GLI‑14. Na teoria, um ‘bilhete virtual’ é sorteado pelo sistema e já tem seu resultado pré-determinado ao ser exibido ao apostador, que precisa apenas ‘raspar’ o item.

Na prática, a dinâmica é bem mais confusa: o terminal exibe três linhas por cinco colunas que giram – como em um slot game clássico. Combinações vencedoras piscam na tela sem explicação clara; o quadro de regras some em segundos.

“É confuso mesmo”, disse uma funcionária ao desistir de explicar porque o bilhete deste repórter foi premiado – alguns centavos – ao combinar quatro símbolos completamente diferentes entre si (duas espécies de letra J, um trevo e uma letra K). “É igualzinho [sic] ao ‘jogo do tigrinho’”, admitiu, diante da minha insistência. A comparação foi repetida por diferentes atendentes nas outras sedes da Apostou visitadas pela reportagem.

Questionada sobre a similaridade com o ‘tigrinho’, a Apostou rebate. “Não há qualquer relação entre os bilhetes eletrônicos da Apostou e jogos de azar como o ‘jogo do tigrinho’”, sustenta a empresa, em nota. Sobre a estética de caça-níquel das máquinas, afirma não ter feito a escolha e que estaria limitada ao que é ofertado pelo mercado, já que não produz seus próprios equipamentos. A distinção entre eles, explica a empresa, está centrada no fato de que um é legalizado e passa por auditorias e outro não, podendo ser manipulado, com prêmios predefinidos em banco de dados em vez de acúmulo de apostas.

Além dos jogos mencionados, há máquinas instaladas nas betshops que ofertam um jogo semelhante ao bingo. Por 1 real, você compra quatro cartelas e, a cada aperto de botão, vê um número ser sorteado. Os bingos, convém lembrar, também foram proibidos no Brasil em 2004.

Bicho do Paraná

A atuação das betshops é chancelada pelo governo do estado, atualmente comandado por Ratinho Jr. (PSD). Quem dá o aval é a Lottopar, braço da Secretaria da Administração e da Previdência (SEAP).

O modelo só recebeu autorização para funcionar no Paraná. No Brasil, não há registro de outra operação semelhante. A marca paranaense se gaba, inclusive, por ter sido a pioneira do formato no mercado de apostas do País.

Em troca de 15 milhões de reais e royalties, a Apostou poderá explorar as loterias instantâneas pelos próximos 10 anos, com um lucro estimado em mais de 7 bilhões de reais. Dessa bolada, 80% serão embolsados pela BETPR Concessionária de Loterias do estado do Paraná SPE, dona da Apostou. Apenas 10% serão repassados ao governo, e outros 10% investidos em campanhas sobre o jogo responsável.

Até aqui, foram instaladas videoloterias nas cidades de Curitiba, Matinhos, Guaratuba, Campina Grande do Sul, Londrina, Maringá, Foz do Iguaçu e Santo Antonio da Platina. Ao todo, são 360 máquinas disponíveis nestes locais, além de outros 203 equipamentos espalhados em 185 pontos que não são videoloterias, mas vendem ‘raspadinhas’ em papel.

Há um plano de expansão em curso que deve fazer os números saltarem significativamente até o fim de 2025: serão, segundo projeção da Apostou, 5 mil equipamentos distribuídos em 80 novas betshops no estado.

Os problemas éticos e de saúde

Para o sociólogo Marcelo de Mello, da Universidade Federal Fluminense, o governo paranaense dribla o debate feito nos projetos que liberariam cassinos com contrapartida turística: “As videoloterias são uma uma brecha para você ter um espaço físico, à semelhança dos cassinos, só que sem obedecer a regra dos cassinos”, critica. “Essas betshops são comuns na Europa, mas muito restritas no acesso e na publicidade.”

Mello, cuja pesquisa é dedicada aos jogos de azar, critica os rumos da regulação no Brasil. “A legislação é muito tímida, fez o Brasil ter problemas com os jogos de azar que outros países não têm, porque eles possuem uma legislação mais rigorosa”, aponta, e ironiza: “as bancadas da bala, dos evangélicos e do agro, que se vendem como conservadoras, não resistiram ao lobby dos jogos de azar.”

Na linha de frente da saúde pública, Gilson Pereira, do SindSaúde‑PR, vê uma ‘armadilha de endividamento’ num cenário de salários comprimidos e direitos violados. “Isso não é do acaso, é planejado. É uma estratégia nacional e estadual para regulamentar apressadamente e beneficiar apenas quem vai lucrar”. O setor, nota ele, tem observado um crescimento nos problemas com ludopatia. O tamanho real da ‘epidemia’, no entanto, ainda não foi quantificado.

Do ponto de vista financeiro, o prejuízo é mais palpável: o Banco Central calcula que os brasileiros gastem 30 bilhões de reais mensais com bets e jogos. O comércio já alerta, desde o ano passado, para uma redução do consumo diante do avanço das apostas sobre o orçamento das famílias.

O que diz o governo do Paraná

Procurada por CartaCapital, a Secretaria de Administração do Paraná não respondeu. No site da Lottopar, porém, há elogios ao modelo “consagrado na Europa e nos EUA” e uma página inteira tentando diferenciar videoloterias de caça‑níqueis — ilustrada por uma imagem gerada por IA que, ironicamente, mostra duas máquinas idênticas.

O Ministério da Fazenda também foi procurado para comentar a previsão legal para a operação das videoloterias, mas não retornou.

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