Entrevistas
Leonardo Padura: Esquerda já não pode construir um futuro sobre as bases de Lenin
A CartaCapital, o romancista cubano mais traduzido no mundo reflete sobre os desafios em Havana, o peso da volta de Trump e a ligação dos jovens com a revolução


Leonardo Padura atravessa a ‘policrise’ cubana com a mesma obstinação que move seu detetive Mario Conde pelas vielas de Havana. De sua casa no bairro de Mantilla, onde nasceu em 1955 e ainda mora, o romancista mais traduzido da ilha enumera os problemas que ainda afetam o cotidiano local: seis décadas de embargo norte‑americano, a crônica anemia da infraestrutura estatal e, agora, o retorno de Donald Trump à Casa Branca – um golpe direto sobre qualquer expectativa de alívio do econômico. O mundo, a rigor, pouco se move para auxiliar Cuba na tentativa de se livrar do garrote norte-americano.
Em entrevista a CartaCapital, Padura lamenta o desencanto que empurra sobretudo os jovens para longe do projeto revolucionário inaugurado em 1959. Afastar‑se da Revolução, sugere ele, é tanto uma escolha prática – “quando você passa 20 horas por dia sem eletricidade, não pode ser feliz” – quanto simbólica: a perda de horizonte esvazia a promessa de futuro igualitário que um dia incendiou a ilha.
Mas o escritor vê centelhas nesse breu: cita Gabriel Boric, no Chile, e Lula – a quem visitou na sede da Polícia Federal em 2019 – como exemplos de que reformas progressistas continuam possíveis, desde que sustentadas por alianças amplas e pela coragem de admitir erros. Também ergue a voz contra a maré ultraliberal que Javier Milei tenta impor à Argentina, mas reconhece que o cenário mudou. “Não podemos mais pensar em um futuro como o planejado por Lenin e Trotsky na Rússia”, diz. “As circunstâncias e o mundo são diferentes.”
CartaCapital: O terceiro mandato de Trump já impacta Cuba e os cubanos?
Leonardo Padura: Vivemos um momento que será lembrado como a era Trump, porque alterará muito a vida no planeta.
No caso específico de Cuba, Trump, logo ao tomar posse, renovou a presença da ilha na lista dos países que não combatem o terrorismo. É uma classificação que ele havia imposto em seu mandato anterior e que Joe Biden manteve até seis dias antes do fim de seu governo. Isso, é claro, não teve um efeito imediato na vida cotidiana cubana, mas teve um efeito na vida cubana em geral.
A inserção de Cuba na lista de países que não lutam contra o terrorismo implica, por exemplo, em que o turismo para Cuba diminua, porque os europeus que querem visitar os Estados Unidos e precisam obter o visto eletrônico não podem fazê-lo se visitarem Cuba. E muitos cidadãos americanos não podem visitar Cuba.
Essas são algumas das consequências já vistas. Podem vir outras. E no Departamento de Estado quem está no comando é Marco Rubio, com uma política de hostilidade ao governo cubano bem conhecida e muito agressiva.
Agora, na vida cotidiana cubana, a primeira coisa que aconteceu foi que Trump imediatamente fechou o acesso de cubanos que queriam emigrar para os Estados Unidos por meios legais e ilegais. Ele fechou esse acesso.
Depois, revogou o chamado sistema de parole humanitário, que permitia que cubanos e suas famílias emigrassem para os Estados Unidos e obtivessem residência em dois anos por meio de um patrocinador nos Estados Unidos.
Ele está ameaçando deportar algumas das pessoas que já estavam nos Estados Unidos, beneficiadas por esse programa.
CC: E quais são hoje os problemas mais agudos em Cuba?
LP: Vivemos uma policrise em Cuba que tem aspectos muito visíveis e muito dolorosos, como uma crise energética que provoca longos apagões. Há partes do país onde se fica até 20 horas por dia sem eletricidade, e você pode imaginar o que isso implica em todos os sentidos.
Escassez de combustível, longas filas nos postos de gasolina para abastecer com gasolina ou óleo — quando há disponibilidade, eles criam mecanismos para agendar turnos de retirada e entrega. Falta de comida, de remédios… Quase todos os aspectos da vida cubana estão em crise.
CC: O que provocou essa crise?
LP: Isso se deve, entre muitos outros motivos, ao aumento do bloqueio ou embargo norte-americano contra Cuba, que afeta diretamente o cotidiano cubano.
Há também o elemento de ineficiência nas estruturas econômicas do país, que entraram em crise, não foram transformadas na velocidade necessária, e chegamos ao ponto em que uma das manifestações mais visíveis dessa crise foi a grande onda migratória que saiu de Cuba nos últimos anos e que continua a sair.
CC: Há alguma expectativa de reaproximação entre Cuba e EUA, como havia em 2016?
LP: Não há nenhum vestígio de aproximação. Não creio que haja qualquer país no mundo neste momento, nem mesmo a Rússia, que mostre qualquer traço de reaproximação com os Estados Unidos.
O atual governo dos Estados Unidos é tão imprevisível e tem uma política tão nacionalista que é impossível pensar na possibilidade de reaproximação.
CC: Você pensa em deixar Cuba?
LP: Não, ainda estou escrevendo aqui. Estou terminando um novo romance que deve sair em setembro — no Brasil, sairá um pouco depois. Meu livro anterior, um livro sobre Havana, sairá no Brasil neste ano, pela editora Boitempo.
E espero que no ano que vem seja publicado esse novo romance, que se chamará Morir en la arena, uma história que tem muito a ver com o destino da minha geração em Cuba, um destino que vejo em muitas das pessoas que conheço, que foram meus colegas de classe, meus companheiros de time de beisebol, meus vizinhos do bairro, que ficaram tremendamente empobrecidos nos últimos anos.
E depois de tanto tempo trabalhando, eles têm uma vida muito complicada, dependendo de uma estratégia de sobrevivência ou de dinheiro enviado por parentes nos Estados Unidos, algo que também se tornou complicado. Faltava isso entre as consequências do governo Trump: as formas de fazer transferências a Cuba também estão fechando.
Preciso desse ambiente para poder escrever. Mas as dificuldades também me afetam. Por exemplo, passei um mês no México promovendo meus livros e, quando voltei, houve um apagão em Cuba e fiquei sem energia elétrica por três dias. Tenho uma pequena estrutura elétrica que funciona com gasolina, mas ficamos sem gasolina e não havia onde reabastecer. Mas aqui estou, já fazendo alguns preparativos para comemorar o aniversário de 97 anos da minha mãe. Ela mora aqui na mesma casa onde nasci.
CC: Diante das dificuldades, como é a vida cultural em Cuba?
LP: O êxodo de cubanos nos últimos anos incluiu muitos criadores, escritores, músicos, atores e artistas plásticos. Amigos escritores ou músicos emigraram, mas ainda há um grande potencial cultural em Cuba.
Para nós, na cultura e no beisebol, acontece algo parecido com o Brasil na cultura e no futebol: saem cinco e aparecem dez. Então, é algo que permite, por exemplo no caso da música, que constantemente vejamos novos talentos surgindo.
O problema mais complexo da visibilidade da cultura é no caso da literatura, porque se há uma crise para tantas coisas, é claro que há uma crise para obter papel e publicar livros. Atualmente, o nível de publicação em Cuba é muito baixo, e meus últimos cinco livros não foram publicados aqui. Não sei se é por falta de papel ou por falta de vontade de fazer circular esses livros, incluindo três romances, dois dos quais já saíram no Brasil — Pessoas Decentes e Como Poeira ao Vento.
CC: Que vínculo resta entre os cubanos e a Revolução, 66 anos depois?
LP: Acho que não podemos falar de uma única tendência, existem muitas.
Vejo pessoas na televisão ou em atos públicos falando sobre a fé no processo revolucionário, a lealdade às ideias revolucionárias, mas também vejo nos aeroportos cubanos longas filas para voos de pessoas que vão embora para nunca mais voltar.
Essas pessoas precisam fazer investimentos que envolvem vender suas casas e encontrar alguém para pagar suas viagens ao exterior. Em geral, vejo que há muitas pessoas chateadas, com muita raiva do que está acontecendo.
Quando você fica 20 horas por dia sem eletricidade, não pode ser feliz. Como você cozinha, conserva a comida, vive uma vida normal? O verão está apenas começando, com temperaturas de 38 graus, e se você não tiver um ventilador, não consegue dormir.
Essas pessoas estão com muita raiva em relação à realidade em que vivem. E não é uma questão deste mês ou desde janeiro, quando Trump chegou à Presidência dos Estados Unidos. É uma situação que já dura vários anos, e que não se sabe por quanto tempo vai persistir.
A falta de perspectiva também implica em uma perda de esperança, e esse é um sentimento muito difundido na sociedade cubana atual.
CC: A esquerda latino‑americana precisa reinventar suas utopias?
LP: Acredito que sim, as esquerdas latino-americanas têm de buscar alternativas mais lógicas, mais factíveis e mais coerentes.
Não podemos falar de uma única esquerda latino-americana, porque não sei se governos como o de Daniel Ortega, na Nicarágua, ainda podem ser considerados de esquerda.
Tem o modelo, por exemplo, de Gabriel Boric, no Chile, e o de Lula, no Brasil, e tem outros modelos que foram desmantelados, como o que aconteceu no Equador com todo aquele fenômeno da Revolução Cidadã. Pedro Castillo, o presidente peruano que está preso, também veio com um programa de esquerda.
Ou seja, há muitas maneiras de essa esquerda se manifestar. Eu me lembro de que o presidente Lula me disse, em uma conversa que tivemos no Brasil, que muitos dos problemas que o movimento de esquerda teve se deveram aos próprios erros da esquerda, e acredito que isso seja verdade.
A direita é muito coerente, é muito clara sobre quais são seus objetivos. A esquerda às vezes perde essa clareza e, por causa das lutas internas, das lutas pelo poder e para se manter no poder, altera os códigos que deveriam reger uma verdadeira política de esquerda.
Também é evidente que muitas das conquistas que obtivemos em todo o mundo foram propostas da esquerda, não da direita: sistemas de seguridade social, benefícios públicos, educação universal e gratuita.
Espero que todas essas propostas sejam preservadas, que não ocorra o que está acontecendo na Argentina e que a esquerda se torne muito mais coerente em sua visão de um futuro possível. Não podemos mais pensar em um futuro como o planejado por Lenin e Trotsky na Rússia.
Deveríamos ver as coisas de forma diferente, as circunstâncias e o mundo são diferentes. As pessoas no mundo todo pensam diferente, as ideias circulam de modo diferente, e tudo isso deve ser assimilado.
CC: Quais são os seus planos para os 70 anos que se aproximam?
LP: Estou finalizando um romance, que espero seja lançado em setembro. Depois, tenho algumas alternativas para trabalhar em um projeto de filme ou começar a pensar no próximo romance. Tenho muitas viagens promocionais e agora vou à Europa — Estônia, Portugal, Espanha, Romênia, Grécia e Chipre.
Para fazer turnês promocionais tão longas, você também tem de se preparar física e mentalmente. É parte do trabalho e encaro isso como tal — atualmente, o mercado de livros é muito competitivo.
Estou me tornando um velho, embora tente não me ver naquela terrível categoria da terceira ou quarta idade. Busco me manter fisicamente ativo, mas também muito ativo mentalmente.
Quero permanecer bem ativo, buscar uma boa literatura, bons filmes para assistir, tentar dedicar o máximo de tempo que puder a conversar com meus amigos. Meu personagem Mario Conde diz que se sentar para comer e beber com os amigos e passar duas ou três horas falando merda também é um ato de higiene para a mente. E é verdade.
Acabei de voltar do México, onde houve ocasiões em que dei autógrafos por duas horas sem parar. Espero poder fazer isso também no Brasil no ano que vem. Sei que já há muitas pessoas no Brasil procurando pelos meus livros, e isso é uma grande sorte.
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