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Serra da discórdia

O STF promete encerrar neste ano uma querela dos tempos do Brasil Império entre o Ceará e o Piauí

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Viçosa do Ceará é uma das cidades mais prósperas da região, rica em minério e propícia à agropecuária – Imagem: Prefeitura de Viçosa/CE
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Com um Produto Interno Bruto de 6,5 bilhões de reais e Índice de Desenvolvimento Humano de 0,623, a região da Serra de Ibiapaba, entre Ceará e Piauí, vive uma crise de identidade que dura mais de um século. Os 13 municípios cearenses no entorno da serra passaram a ser reivindicados pelo governo piauiense por meio da Ação Cível Originária 1831, sob o argumento de que o Ceará invadiu a área do Piauí, litígio nascido nos tempos do Brasil Império e agora nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Caberá à ministra Cármen Lúcia analisar a qual estado pertence a população, o eleitorado, os recursos e as riquezas naturais dessas cidades. Até maio, o Exército deve concluir um estudo na região para identificar a demarcação correta do território, documento subsidiário da decisão da Corte, que promete pôr fim à querela ainda neste ano.

Os dois estados adotam visões distintas em relação ao litígio. A defesa do Piauí apega-se a documentos históricos que remontam aos períodos imperial e colonial, como as Cartas Donatárias de 1535, o mapa do Piauí de 1760, o alvará de 1770, o mapa do Ceará de 1800, a lei de criação de um município cearense no Piauí de 1865, o Atlas do Império, de 1867, além do Convênio Arbitral de Limites Interestaduais, de 1920. O Ceará, por sua vez, alega o critério do pertencimento, com base na população que vive há mais de um século na região.

Os piauienses reivindicam uma área do estado vizinho de grande potencial econômico

A ação tramita no STF desde 2011 e tem como base o Decreto Imperial 3012, de 1880, no qual o Piauí diz haver três áreas litigiosas na fronteira com o Ceará e que os sucessivos governos cea­renses teriam avançado ilegalmente. São quase 3 mil quilômetros quadrados de extensão de uma área rica em ferro, ouro e cobre, de solo fértil e clima úmido de Mata Atlântica, um bálsamo para a agropecuária, e com alto potencial de energias renováveis. Ou seja, uma região economicamente promissora e que hoje representa 5% do PIB do Ceará. “Existem áreas litigiosas entre os dois estados que foram ocupadas exclusivamente pelo Ceará. Uma área em litígio territorial não pode ser explorada economicamente por nenhuma das partes até o fim do julgamento. A questão complica-se ainda mais pelo fato de o Ceará ter avançado, ano após ano, além do polígono de terras em litígio, descendo os planaltos da Ibiapaba dentro do território piauiense”, afirma o geógrafo e pesquisador Eric Melo, assistente-técnico da Procuradoria-Geral do Piauí. “É preciso levar em consideração o sentimento de pertencimento dos envolvidos, tem toda uma identidade histórica e cultural, toda uma autodeterminação. São mais ou menos 400 mil habitantes. Nunca, em nenhum momento da história, essas cidades foram assistidas pelo Piauí”, rebate a senadora petista Augusta Brito, que esteve à frente do debate na Assembleia Legislativa do Ceará, quando deputada estadual.

Em 2021, segundo dados do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará e do Comitê de Estudos de Limites e Divisas da Assembleia Legislativa, os 13 municípios em disputa contavam com 42 escolas e 12 unidades de saúde administradas pelo governo cearense, além de infraestrutura hídrica, energética e malha viária. Na região, existem mais de 120 imóveis rurais certificados pelo Incra com endereços cearenses, mais de mil estabelecimentos agropecuários e ainda várias terras indígenas e quilombolas que se autoidentificam como partes do Ceará. Quase 200 torres eólicas em funcionamento foram licenciadas pelo governo cearense e há a promessa de mais de 12 bilhões de investimentos em novos projetos de energia renovável.

Além dos 13 municípios em disputa do lado cearense, outras nove cidades do Piauí ficam na área do litígio, mas não são reivindicadas pelos vizinhos. Melo cita o decreto de 1880, assinado por Dom Pedro II, segundo ele, para resolver a demarcação das terras e minimizar uma crise hídrica enfrentada à época pelo Ceará. O documento teria resultado na devolução por parte do estado de “terras invadidas no litoral ao Piauí” em troca da doação dos municípios Príncipe Imperial e Independência, com importantes nascentes que auxiliariam no combate à seca. “O Piauí cumpriu sua obrigação, a população que ali estava tornou-se cearense. O Ceará devolveu o município ao Piauí, mas não cumpriu integralmente o decreto. A fronteira estadual se dá pelo divisor de águas, o relevo, a partir do seu ponto mais alto. O Ceará, que estava além do divisor de águas, não aceitou recuar.”

O geógrafo viajou à Europa para consultar documentos originais que, segundo ele, confirmam a titularidade territorial ao Piauí. O pesquisador cita um registro de 1754, ainda inédito, ao qual CartaCapital teve acesso em primeira mão. Trata-se de uma peça do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, e que atesta pertencer ao Maranhão toda a área da “Serra da Hybiapaba” até o “Ryo da ­Parnayba”. À época, o Piauí pertencia ao Maranhão, assim como o Ceará a Pernambuco. Ou seja, a Serra da Ibiapaba é o divisor natural e histórico entre os territórios dos dois estados.

O processo está nas mãos da ministra Carmén Lúcia. O STF promete resolver a pendência que vem do reinado de Dom Pedro II – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR e Acervo/IMS

As divergências também ficam visíveis na avaliação do IBGE e no relatório preliminar do Exército. O Ceará aferra-se aos argumentos do IBGE, que prioriza o pertencimento da população local, enquanto o Piauí se identifica com a posição do Exército, limitada aos documentos históricos e cartográficos. O método utilizado pelo IBGE considera questões identitárias, favorecendo o Ceará. No método adotado pelo Exército, o Piauí tem vantagens, considerando os documentos oficiais. Uma nota técnica emitida pelo Ipece ressalta a necessidade de se considerar, além do aspecto físico-geográfico, a dimensão social, política, econômica e antropológica do território.

Ao contrapor-se ao parecer do Exército, a nota do Ipece diz que o método de análise a ser adotado no estudo deve “considerar estratégias de desenvolvimento que incluam a territorialidade, contemplando o acontecer de todas as atividades cotidianas, seja no espaço do trabalho, seja do lazer, da Igreja, da família e da escola, entre outros. Essa população, que já desenvolveu uma territorialidade no espaço em que reside, pode perder sua identidade, a partir de uma mudança com base em critérios meramente cartográficos”, diz um trecho do documento.

“Estive nas áreas de litígio e constatei que os moradores da região são totalmente passivos em politicagem. Geralmente analfabetos, não fazem a menor ideia sobre a que lugar pertencem. Por vezes, se conseguem um benefício do Piauí, querem ser acolhidos por lá. Em outras áreas, querem ser acolhidos pelo Ceará, pelo fato de o governo ter feito uma estrada. E assim vai… A ocupação dessa área não foi natural, foi uma política pública do Ceará. Essas ocupações sempre foram reclamadas pelo Piauí, por séculos”, rebate Melo.

Enquanto o IBGE aponta aspectos culturais, o Exército restringe-se aos documentos históricos

“A perícia do Exército Brasileiro, embora eficiente, é puramente técnica e cartográfica, analisa os fatores físicos e naturais, como os divisores de água, e não compreende a dimensão simbólica, cultural e identitária que os grupos sociais tecem no território. Essa dimensão simbólica faz toda a diferença para a população que reside na área de litígio e que, devido aos traços identitários e culturais, se vê como cearense ou piauiense. Essa população, que já desenvolveu uma territorialidade no espaço em que reside, pode perder sua identidade, a partir dos resultados de um trabalho técnico e de uma decisão judicial, completamente além das relações que ela promove no território”, argumenta a pesquisadora Vládia da Silva Souza em sua tese de doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Ceará.

O conflito entre os dois estados ultrapassa a territorialidade e o debate identitário. O pano de fundo da disputa é mesmo a questão econômica. Sendo uma das cidades mais ricas da região, Viçosa do ­Ceará registra um PIB per capita de 9,7 mil reais e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0,571, segundo dados do IBGE. A agricultura é a principal base da economia do município, além do turismo. E esse potencial reflete em toda a região da Serra da Ibiapaba, conhecida pela alta produção de flores e principal exportadora do produto no Ceará. É também uma área de interesse do agronegócio e rica em minérios, fatores que potencializam a disputa territorial a um aspecto colocado em relevo na pesquisa de Souza.

Um dos registros cartográficos que provam a titularidade piauiense da região. O Ceará recorre ao sentido de pertencimento da população, após décadas e décadas de integração cultural e econômica

“O conflito de terras entre o Ceará e o Piauí, atualmente, fundamenta-se em questões de ordem econômica, política e fiscal. Em termos de economia, evidencia-se na Serra da Ibiapaba o potencial agropecuário, turístico e a entrada de capital para investir em energia eólica. Em termos políticos, visa-se a ampliação e/ou manutenção de poder político, uma vez que a população representa um aumento da quantidade de votos, elevando as possibilidades de conduzir as lideranças políticas locais e estaduais ao poder. Em termos fiscais, nota-se a disputa por recursos financeiros oriundos de repasses do governo federal e o aumento da capacidade arrecadatória dos municípios, ambos influenciados pelo tamanho da população”, diz trecho da tese, argumentando que o interesse da população não é considerado. “As necessidades da população estão em segundo plano, esta poderá ou não ser melhor assistida com a resolução desse litígio, mas entende-se que isso depende muito mais de uma gestão estadual e municipal transparente, participativa e eficaz, que se comprometa com os interesses dessa população. Caso o litígio seja sanado e as gestões públicas não cumpram esse papel, essa população continuará desamparada, sem ter seus direitos de cidadãos garantidos.” O melhor caminho, anota a pesquisadora, não está na realização das perícias técnicas ou na análise de documentos históricos e cartográficos, mas na realização de um plebiscito para a população decidir o que prefere. •

Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.

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