

Opinião
Labirinto judicial de Ana Hickmann mostra que nenhuma mulher está imune à revitimização
A negativa de que o pedido de divórcio feito pela apresentadora tramite em vara de violência doméstica descumpre a lei e representa enorme prejuízo à vítima


Nos últimos dias, a denúncia de violência doméstica feita por Ana Hickmann contra o marido Alexandre Corrêa tem ocupado pauta nos noticiários e mídias sociais. A informação de que o pedido de divórcio com base na Lei Maria da Penha feito pela modelo e apresentadora foi negado pelo juiz da 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo, tem gerado dúvidas sobre a aplicação e eficiência da Lei Maria da Penha.
De acordo com o noticiado pela imprensa, a decisão que determinou a remessa do pedido de divórcio para a vara de família estaria fundamentada na alta complexidade e falta de estrutura para julgamento do pedido.
É importante, primeiro, compreender que a decisão não apreciou, tampouco negou que o pedido de divórcio tramitasse com base na Lei Maria da Penha. Houve o declínio de competência e remessa daquele pedido à vara de família – o inquérito policial continuará correndo na vara criminal. Contudo, a decisão descumpre a lei e representa enorme prejuízo à vítima ao retirar dela a opção de propor o pedido de divórcio na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, submetendo-a ao risco de sofrer novas violações.
A Lei Maria da Penha é um microssistema jurídico de proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar que, além de trazer inovações importantes como as medidas protetivas de urgência, cria mecanismos indispensáveis à sua efetividade, como os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cível e criminal.
A concentração do julgamento em uma vara especializada protege a mulher na medida em que evita que ela tenha de ingressar com mais de um processo perante diferentes juízos, lidar com a angústia e ansiedade de passar por sucessivas audiências e inquirições sobre os mesmos fatos, reviver e relatar as violências para várias pessoas em diferentes locais. Ademais, as varas especializadas poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar integrada por profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde, de modo que a cumulação da competência cível e criminal traga maior eficiência e celeridade ao processo.
A decisão traz outro risco de revitimização a Ana Hickmann, ante à notícia de que o marido teria proposto uma ação contra ela fundada na Lei de alienação parental. A proliferação da aplicação desta lei através de um viés machista nas varas de família acarreta a banalização da violência doméstica – peritos em direitos humanos da ONU apelaram ao governo brasileiro pela eliminação da lei, em casos de violência doméstica, por penalizar mães e crianças.
Essa estratégia costuma ser utilizada agressores após a mulher fazer o pedido de medida protetiva e querer a separação, buscando a revogação das medidas e a transferência da guarda do filho ao genitor. Trata-se de uma forma de perpetuação do ciclo de violência valendo-se do judiciário para tanto e, pior, dos filhos em comum. Presenciar agressões contra a mãe e conviver com o seu sofrimento em decorrência das violências praticadas pelo genitor também causa danos emocionais ao filho. Autor de violência doméstica e “bom pai” são conceitos antagônicos.
E se não houver vara exclusiva com competência em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher? A letra da Lei Maria da Penha traz a solução ao dispor que as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, o pedido de divórcio de Ana Hickmann poderia, sim, tramitar na 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica e Familiar de Itu, em relação aos temas de guarda de filhos, pensão alimentícia etc. – a lei exclui apenas a pretensão relacionada à partilha de bens, que deve tramitar na vara de família.
A tramitação do pedido de divórcio na vara de família prejudica o julgamento com base na Lei Maria da Penha? Absolutamente, a abrangência da aplicação da Lei Maria da Penha e do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ independe da vara judicial em que tramita o processo.
No Brasil há apenas 153 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, quantidade insuficiente para atender à crescente demanda dos processos com base na Lei Maria Penha; em 2022, 640.867 processos de violência doméstica e familiar e/ou feminicídio ingressaram no Poder Judiciário. Por isso, na prática, decisões como essas são comuns e quem paga a conta pela ineficiência do Poder Público é o lado mais fraco – neste caso, a mulher.
Infelizmente, a discriminação de gênero é “democrática” e pode atingir a toda e qualquer mulher. Nem mesmo Ana Hickmann está imune, uma mulher famosa, bem-sucedida e privilegiada. A Lei Maria da Penha é um importante remédio para esse mal, porém continua sendo rechaçada e banalizada, assim como as vítimas que protege.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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