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Missão impossível?
O governo Lula é instado a propor soluções para a crise de segurança no Rio de Janeiro e para frear o avanço das facções pelo país


Siga o dinheiro. A célebre linha investigativa adotada pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward em 1972 – no caso Watergate, que levou à renúncia de Richard Nixon, então presidente dos EUA – será, meio século mais tarde, o norte de uma nova tentativa de parceria entre o governo federal e as autoridades estaduais para combater o crime organizado. O Brasil está habituado a ver a repetição do mesmo filme, encenado por diferentes atores, a envolver ineficazes forças-tarefa e operações militarizadas em comunidades pobres. Mas, desta vez, há grande expectativa quanto a um resultado diferente, até porque a crise da segurança pública atingiu um patamar jamais visto anteriormente.
Antes concentradas na Região Sudeste, as facções estenderam seus tentáculos de Norte a Sul, em uma miríade de crimes que vão muito além dos roubos, sequestros e latrocínios com os quais os brasileiros aprenderam a conviver nos centros urbanos. No Rio de Janeiro, onde facções do narcotráfico e grupos milicianos ora se matam, ora se associam, em uma complexa disputa por controle territorial e econômico, a morte de um chefe miliciano pela polícia resultou em uma retaliação inédita com 35 ônibus incendiados pela cidade. Responsável por 28% do PIB nordestino e aprazível refúgio de turistas, a Bahia viu as taxas de homicídios e de letalidade policial dispararem, a ponto de garantir o segundo lugar no ranking nacional de mortes violentas. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 47,1 assassinatos por cem mil habitantes em 2022 – o estado vem atrás apenas do Amapá, na Região Norte, a ostentar um índice superior a 50.
A capital fluminense viveu um dia de terror após a morte de um líder miliciano pela polícia – Imagem: Redes sociais
Na Amazônia, o governo ainda luta para limpar o território da presença de organizações que usam a floresta como rota do tráfico de drogas e para praticar crimes ambientais, como extração ilegal de ouro e madeira, tráfico de animais e biopirataria, entre outros. Disputas sangrentas chegaram a lugares inimagináveis até pouco tempo atrás, como o Guarujá, no litoral de São Paulo. Um acirramento jamais visto na disputa entre grupos por pontos de venda de drogas na capital e no interior fez saltar os números da violência no Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. Até mesmo pacatas cidades do interior se veem acuadas pelo fenômeno do “novo cangaço”, com a atuação em bando de criminosos inspirados no legado do grupo de Lampião.
O bicho parece feio, e de fato é. Para olhá-lo de frente, o governo federal usará o conflagrado Rio de Janeiro como palco inicial. Um mês após o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciar o envio de homens da Força Nacional de Segurança (FNS) ao estado, o secretário-executivo da pasta, Ricardo Cappelli, reuniu-se, na segunda-feira 30, com o secretário da Casa Civil do Rio, Nicola Miccione, e outras autoridades federais e estaduais. Foi decidida a criação do Comitê Integrado de Investigação Financeira e Recuperação de Ativos, o Cifra, novo colegiado a ser integrado por representantes da Polícia Civil e da Secretaria de Fazenda do Rio de Janeiro, e também pela Secretaria Nacional de Segurança Púbica, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. “O Comitê fará um mapeamento de movimentações financeiras atípicas por organizações criminosas inédito no País”, promete Cappelli.
O Ministério da Justiça propõe o rastreamento das transações financeiras de grupos milicianos e do narcotráfico
O Cifra será oficialmente anunciado na próxima quarta-feira 8, após reunião entre Dino e Cláudio Castro. Até lá, o governo federal pretende responder a outra solicitação do governador do Rio: integrar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, ao novo Comitê. “Vamos conversar com o Ministério da Fazenda sobre essa possibilidade, que vemos com bons olhos. Policiais da Senasp que atuam no Coaf estão sendo deslocados para ajudar a polícia do Rio de Janeiro com foco em investigações financeiras”, diz Cappelli. Segundo o secretário-executivo, o governo coloca em prática a lógica do Sistema Único de Segurança Pública: “Vamos integrar os entes federados com o objetivo de investigar crimes financeiros e lavagem de dinheiro. A descapitalização das organizações criminosas é decisiva para que possamos reduzir seu potencial ofensivo e desmantelá-las”.
Com a imagem desgastada, Castro diz apostar na estratégia e avisa que “disponibilizará os melhores auditores, procuradores e investigadores” para o trabalho conjunto com o governo federal. “A Secretaria de Fazenda fará um levantamento de todos os comércios nas áreas de milícia e de tráfico. E também de possíveis parentes de traficantes e milicianos que tenham CNPJs vinculados aos seus CPFs. Contamos com o trabalho do Coaf para detectar onde está a lavagem de dinheiro”, afirma o governador.
Castro, Dino e Capelli discutem propostas para resgatar o Rio de Janeiro do crime organizado. As facções se espalham pelo País e empurraram a Bahia para a vice-liderança do ranking de assassinatos – Imagem: iStockphoto e Tom Costa/MJSP
O advogado Eugênio Aragão, ministro da Justiça de Dilma Rousseff, avalia que é estrategicamente correto “seguir o dinheiro”, mas alerta que “isso não pode ser feito à custa do esforço tático de neutralizar a capacidade de enfrentamento das organizações criminosas contra a força pública, pois suas lideranças precisam ser presas e as organizações desbaratadas”. Duas vezes candidato ao governo do Rio, o deputado Tarcísio Motta, do PSOL, acrescenta: “Sem dúvida, é importante que haja ações voltadas à asfixia logística e financeira das milícias, mas esta e outras ações de inteligência não se resolvem com operações desenfreadas, chacinas e execuções” nas comunidades pobres do Rio.
Pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes afirma ser imprescindível que “os esforços de seguir o dinheiro sejam levados a sério”, no Rio ou em qualquer outro estado brasileiro. Ele explica: “O combate ao crime sempre foi muito focado no varejo do narcotráfico ou na base dos grupos criminosos. Pouquíssimas vezes se chegou ao centro de comando das facções e a quem realmente lucra com as atividades ilícitas”. Nunes ressalta que, nos últimos anos, as milícias se aproveitaram da anuência do Estado para desenvolver formas de lavagem de dinheiro sofisticadas e diversificadas: “O esforço de perseguir os fluxos de dinheiro é importante para lidar com esse tipo de criminalidade, que tem na exploração financeira a sua base de atuação”. E acrescenta: “É muito mais difícil fazer esse trabalho agora do que seria há alguns anos. Com o desenvolvimento econômico das milícias, o cenário agora é muito mais complexo”.
O sociólogo Renato Sérgio de Lima, coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, observa que o fenômeno tem abrangência nacional. “Há um processo de ampliação do poder das facções de base prisional e também de grupos armados que controlam territórios – não de forma idêntica às milícias cariocas, mas parecida – em todo o País.” Para o especialista, o crime organizado ganhou proporções bem maiores do que é possível quantificar: “É uma realidade nacional que atinge governos de diferentes partidos”. Para se ter uma ideia da dimensão financeira do crime, estimativas no FBSP indicam que a circulação de cocaína no Brasil equivale a cerca de 4% do PIB brasileiro. “Não é uma questão só de polícia ou de esfera penal, há que se pensar toda uma política pública para tentar dar conta desse desafio”, diz.
Em outra reunião, realizada na terça-feira 31, Flávio Dino encontrou os ministros da Defesa, José Múcio, e da Casa Civil, Rui Costa, para tratar da participação dos militares no plano de combate ao crime no Rio. Dias antes, em conversa com jornalistas, o presidente Lula vaticinou: “Eu não quero as Forças Armadas na favela brigando com bandido. Não é o papel delas. Enquanto eu for presidente, não tem GLO (decreto de Garantia da Lei e da Ordem)”. Pablo Nunes retruca: “Não temos a GLO, mas temos o envio de homens da Marinha e da Aeronáutica. Mais dia menos dia, haverá também o emprego do Exército. Aí, a GLO não estará configurada, mas teremos na prática o uso das Forças Armadas na composição de esforços na segurança pública”. Para o pesquisador, há grande preocupação porque “não há clareza sobre o plano de uso dessas forças e quais serão os desdobramentos em termos de uma política pública realmente integrada e estruturada, e não apenas em ações tópicas com vistas a dar uma resposta emergencial”.
Mesmo sem GLO decretada por Lula, militares reforçarão o policiamento de portos e aeroportos
Segundo Cappelli, as Forças Armadas contribuirão naquilo que é sua atribuição constitucional: “A Marinha, por exemplo, vai auxiliar no trabalho de policiamento marítimo feito pela Polícia Federal nas baías de Guanabara e Sepetiba, onde estão localizados os portos de Itaguaí e do Rio de Janeiro, para ampliar a fiscalização das embarcações que por elas circulam”. Em outra frente, é discutida com o Exército, conta o secretário-executivo do MJ, a ampliação da Operação Ágata, que integra o Plano Estratégico de Fronteiras do governo federal e atualmente funciona quatro meses por ano: “Passará a ser uma operação perene de combate ao crime organizado com integração entre PF, Marinha e Exército nas fronteiras secas e marítimas”.
Aragão é contrário à ideia: “As Forças Armadas não têm vocação para segurança pública, nem no Brasil nem em lugar algum do mundo. Enquanto os militares apelam ao uso de máxima força para debelar um inimigo, as polícias visam a manutenção da ordem com o mínimo de força, para evitar conflagrações civis com óbitos civis. A lógica do uso da força é oposta”.
Acompanhado por Múcio e pelos comandantes das Forças Armadas, Flávio Dino reuniu-se com Lula, também na terça-feira 31, para apresentar os resultados das negociações e as propostas acordadas com as autoridades fluminenses e discutir o emprego dos militares nas ações: “Vamos mostrar ao presidente que a fase atual visa não apenas a ostensividade das operações, mas também a apreensão de bens e, portanto, a descapitalização das organizações criminosas em um trabalho integrado de inteligência”. O ministro da Justiça afirma que o Rio de Janeiro “ganhou a primazia” por conta da “emergência dos fatos” que vêm ocorrendo no estado. Os planos para os outros estados virão na sequência, de acordo com as necessidades. “A gente não vai fechar os olhos diante dos fatos. E um bom planejamento é necessariamente flexível. Não pode ser um planejamento que ignore sua excelência, a realidade”, disse Dino.
A Polícia Federal foca em ações de inteligência para combater o narcotráfico. Múcio discute o papel que os militares podem desempenhar no enfrentamento da crise de segurança do Rio – Imagem: Polícia Federal e Antonio Oliveira/Ministério da Defesa
Outro ponto das tratativas entre os governos federal e estadual mal recebido entre os que atuam no setor de segurança pública é a proposta apresentada por Castro de endurecer a legislação para, entre outras coisas, equiparar a formação de milícia ao crime de terrorismo. “O populismo penal não é solução. Nosso problema nunca foi a falta de leis que responsabilizem penalmente os grupos ou indivíduos ligados ao crime, e sim uma corrosão institucional que loteia setores do próprio Estado e passam a ser parte desses grandes mercados que operam nas fronteiras entre o legal e o ilegal”, diz Tarcísio Motta. Já Pablo Nunes classifica como bravatas as propostas do governador: “São movimentos que buscam meramente dar uma resposta à opinião pública e fortalecer uma ideologia. Não podem ser chamados de política pública”.
Para o especialista, é muito difícil tipificar os crimes, principalmente por conta da dimensão e complexidade que as milícias ganharam nos últimos anos. “Como responsabilizar alguém por crime de milícia se nem sequer conseguimos fazer o acompanhamento dos grupos financeiros e revelar as formas de lavagem de dinheiro? Como fazer isso se os grupos milicianos têm representantes dentro do Estado e de setores políticos que defendem seus interesses?”, indaga.
No passado, o atoleiro da segurança pública colocou ponto final em ambiciosos projetos políticos. Ciente disso, o governo federal sabe que um revés nessa área poderá ter consequências eleitorais nefastas em 2024 e, principalmente, em 2026. Diversas pesquisas de opinião realizadas recentemente revelam que a segurança pública é uma das maiores – senão a maior – preocupações dos brasileiros hoje. Segundo uma pesquisa do Instituto Ipsos, a preocupação com a violência e a criminalidade aumentou de 35%, em junho, para 41%, em setembro. Na média mundial, esse temor atinge 32% da população. Outra pesquisa, divulgada este mês pela Confederação Nacional do Transporte, mostra que 63,7% dos entrevistados apontaram a violência e a falta de segurança como os principais problemas do povo brasileiro: “A questão da segurança pública é o calcanhar de aquiles eleitoral da esquerda. A agenda que tende a ser mais autossustentável dentro do bolsonarismo não é a dos valores ultraconservadores da família, e sim a da segurança. É uma agenda que pega muito, não só entre os eleitores de Bolsonaro ou conservadores”, diz o cientista político João Feres Júnior, coordenador do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública da Uerj.
Cláudio Castro apela ao populismo penal ao propor lei para equiparar a formação de milícias ao crime de terrorismo
Uma pesquisa que acaba de ser realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT) com 2 mil entrevistados comparou a adesão a valores por pessoas que votaram em Bolsonaro e por eleitores de Lula, mas têm posições próximas aos bolsonaristas. “As posições ligadas à segurança praticamente empatam, principalmente na questão da proibição das armas de fogo. Há também muita gente que vota em Lula e é a favor da redução da maioridade penal ou contrário à descriminalização das drogas. Existe uma preocupação geral da população brasileira com a segurança pública”, afirma Feres. Para o professor, a solução para a esquerda passa pela reforma institucional da polícia e também por políticas públicas de segurança que “façam sentido, sejam humanas e ao mesmo tempo produzam algum resultado positivo”. É um tema bastante espinhoso, pondera, e “não existe fórmula mágica ou bala de prata para chegarmos a uma solução”.
Para Renato Sérgio de Lima, o governo federal tem nas mãos a oportunidade de fazer uma inflexão no debate sobre segurança pública: “No desenho federativo e republicano do País, o governo federal é o único que tem capilaridade e capacidade de articulação e coordenação suficientes para mudar regras de governança. Já se investiu demais em gestão e aumento da capacidade operacional das polícias, agora precisamos fazer um processo de reforma regulatória da área, dando, inclusive, mais condições de trabalho aos próprios profissionais da segurança pública”.
Para o especialista, é preciso saber articular instituições que têm autonomia federativa em torno de um projeto comum: “O maior desafio é saber, para além das operações policiais, qual é o projeto de mudança na segurança pública. É necessário reduzir o crime, mas, além disso, também garantir condições de vida para a população”. Lima ressalta que nenhum governo, desde a redemocratização, concebeu dessa forma: “Ao sempre reduzirmos o problema à esfera criminal ou policial, perdemos a oportunidade de romper com um modelo extremamente perverso que é perpassado por racismos estruturais, por péssimas condições de vida e por desigualdades”. •
Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Missão impossível?’
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