Política
Cinzas da savana
A devastação do Cerrado tem alta expressiva e coloca em xeque a agenda ambiental do governo Lula


Em contraste com a significativa redução do desmatamento da Amazônia, sucesso que vai ao encontro do desejo do governo Lula de colocar o Brasil na liderança da agenda ambiental global, o descontrole da devastação no Cerrado, considerado a “caixa d’água” do território nacional, surge como um obstáculo de difícil superação. Os dados de satélite relativos a setembro, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, não poderiam ser mais expressivos. Enquanto na Amazônia os alertas de desmatamento caíram 56,8% na comparação com o mesmo mês no ano passado, no Cerrado foi registrado um espantoso aumento de 141%.
Desde o início do atual governo, a diminuição do desmatamento na Amazônia atingiu 49,5% em relação ao mesmo período de 2022. Já o Cerrado acumula alta de 26% na devastação da cobertura vegetal, impulsionada pelo avanço das monoculturas e da pecuária, amparadas legalmente por legislações estaduais permissivas. Símbolo, ela mesma, da devastação do bioma sobre o qual foi construída, Brasília ainda tateia no escuro em busca de caminhos para salvar o que resta do Cerrado.
“A situação do Cerrado é gravíssima porque, em 1988, quando foi aprovada a Constituição, esse bioma, assim como a Caatinga, não teve a devida proteção do Congresso Nacional ou do Poder Público”, afirma Pedro Ivo Batista, presidente da Associação Alternativa Terrazul e membro da coordenação nacional do Fórum Brasileiro de ONGs do Meio Ambiente. Ele refere-se ao fato de que a Carta Magna concede aos estados e seus respectivos órgãos ambientais a prerrogativa de autorizar a supressão da vegetação nativa do bioma em uma área de até 80% por imóvel rural. Nas áreas de Cerrado presentes em estados que compõem a Amazônia Legal, esse porcentual chega a 65% por imóvel. Para André Lima, secretário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente, isso explica os elevados índices de devastação. “Os proprietários têm um certo receio de que o governo Lula restrinja o desmatamento. Então, existe uma corrida que podemos verificar, por exemplo, em Tocantins e na Bahia, onde a devastação cresceu muito.”
As plantações de soja, milho e algodão tomam conta da paisagem – Imagem: Marcos Vergueiro/GOVMT
Segundo os dados do Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais, o Sinaflor, de janeiro a setembro de 2023 já foram emitidas pelos estados licenças para a supressão de 480 mil hectares de vegetação nativa no Cerrado. A quase totalidade dessas autorizações foi dada na região produtiva conhecida como Matopiba, que abrange partes dos territórios de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e sofre grande pressão do agronegócio expansivo. “O Matopiba é um projeto de monocultura de soja, algodão e cereais que não tem trazido qualquer benefício social, econômico ou ambiental para a região. É importante repensar essa produção em bases agroecológicas, com participação da sociedade civil e dos movimentos sociais locais que há muito tempo já fazem o manejo do território”, avalia Renato Cunha, coordenador-executivo do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá). Dez municípios localizados no Matopiba concentram 28,7% dos alertas de desmatamento no Cerrado, e quatro municípios baianos e um maranhense lideram a corrida pela destruição do bioma: São Desidério, Jaborandi, Cocos e Barreiras, na Bahia, e Balsas no Maranhão.
O Ministério do Meio Ambiente afirma que, em 2023, o Ibama já aumentou em 23% os autos de infração por crimes contra a flora do Cerrado, em relação à média para o mesmo período nos quatro anos de governo Bolsonaro. Também houve alta de embargos (22%), apreensões (25%) e destruições de equipamentos usados em crimes ambientais (125%). Além disso, a pasta estima que ao menos metade do desmatamento no bioma apresenta algum tipo de ilegalidade, seja pela ausência de autorização, seja por não respeitar os porcentuais de reserva legal estabelecidos pela legislação. Diante disso, qual a margem de manobra do governo Lula para deter um quadro que contradiz frontalmente as metas ambientais do País? “Há uma série de medidas que estão sendo pensadas, mas dependem dos estados para dar certo”, responde André Lima.
No acumulado do ano, a devastação do sensível bioma aumentou 26%
Duas medidas estruturantes, “uma para combater a ilegalidade e outra para termos a dimensão do que é efetivamente legal e o que não é”, devem ser tomadas, adianta o secretário. A primeira é reestruturar a agenda de fiscalização ambiental de forma articulada com os estados e melhorar o fluxo de informações sobre as autorizações de supressão de vegetação, em sua maioria incompletas e insuficientes. “Precisamos ter respostas dos órgãos estaduais sobre o que é legal ou ilegal para então o Ibama agir de maneira supletiva. Infelizmente, essas respostas não estão sendo suficientes e ágeis.” A segunda medida, acrescenta Lima, é melhorar os sistemas de informação: “Os órgãos estaduais, ao emitirem autorizações de supressão, precisam informar em tempo real os polígonos das áreas autorizadas, mas em 67% dos casos eles não fazem isso. No máximo, informam um ponto, uma coordenada, mas isso não é suficiente para que a gente possa ter a dimensão daquilo que está ou não sob controle”. Diante disso, o objetivo do governo é estabelecer, nos próximos meses, uma regra nacional vinculante para as autorizações de supressão de vegetação no Cerrado.
O governo pretende lançar até o fim de outubro o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado), que encerrou sua fase de consultas públicas no início do mês. Até a publicação do Plano, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que coordena a Comissão Interministerial de Controle do Desmatamento, e a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, responsável pela secretaria-executiva da Comissão, farão reuniões com os presidentes dos consórcios dos estados do Nordeste e do Centro-Oeste para discutir medidas conjuntas de enfrentamento ao desmatamento no bioma. Também estão em curso consultas com os estados abrangidos pelo PPCerrado: “Não dá para, numa canetada do governo federal, simplesmente proibir o desmatamento permitido por lei. Essa concertação precisa ser feita com os governadores para identificar oportunidades no âmbito das regulamentações estaduais”, diz Lima.
Ex-governador da Bahia, Costa tem particular interesse em resolver a situação do estado que dirigiu por oito anos. Segundo os ambientalistas, maior sinergia entre as duas esferas de governo é fundamental. “Grande parte do desmatamento no Cerrado baiano é fruto de autorizações de supressão de vegetação dados pelo Inema, o órgão ambiental da Bahia. É um desmatamento em grande parte legalizado, mas que de legal não tem nada”, avalia Renato Cunha. Os movimentos sociais propõem uma moratória nessas autorizações até que se decida um novo rumo a seguir no estado. “Faltam iniciativas concretas do Poder Público para frear a expansão da monocultura irrigada. Precisamos efetivamente ter outro parâmetro. É fundamental o diálogo entre sociedade civil, Poder Público e setor empresarial rural. Como está, daqui a mais alguns anos a vegetação de Cerrado não mais existirá”, alerta o coordenador do Gambá.
Pedro Ivo lembra que o desmatamento zero é um compromisso de campanha de Lula. “O PPCerrado é fundamental, mas precisa ser executado imediatamente. Também são necessárias políticas de proteção e de apoio à produção sustentável no Cerrado, de forma a apoiar as comunidades locais que já praticam outro modelo de produção e consumo.” O ambientalista afirma esperar que o governo federal seja indutor de uma nova postura no combate ao desmatamento a ser adotada pelos estados: “A questão central não é a falta de alternativa ao modelo predatório, e sim a falta de vontade política para mudar esse modelo. Se realmente quiserem enfrentar os grandes problemas do Cerrado, os governos precisam encarar o desmatamento e a perda da diversidade socioambiental”. •
Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cinzas da savana’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.