Educação

Faperj e Serrapilheira apostam na diversidade como motor de inovação

Doze jovens cientistas negros e indígenas ganharão espaço e recursos para alavancar pesquisas que podem transformar nossa compreensão da ecologia

(Foto: Divulgação)
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Embora autoridades e empresários do setor de ciência, tecnologia e inovação frequentemente enfatizem a importância da democratização do acesso à pesquisa de vanguarda, a realidade mostra que iniciativas concretas são, infelizmente, escassas. Anunciado este mês, um projeto desenvolvido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) em parceria com o Instituto Serrapilheira selecionou doze jovens cientistas negros e/ou indígenas que receberão uma bolsa mensal de 8 mil reais e uma linha de financiamento de até 800 mil reais para desenvolverem pesquisas com foco em ecologia, durante um período inicial de três anos. Ao todo, serão investidos 14,7 milhões de reais.

Os trabalhos abrangerãoe temas como o crescimento de florestas em áreas de restauração, o impacto das mudanças climáticas sobre a floresta, a integração dos saberes indígenas ao estudo do solo e a relação da atuação humana na Amazônia com a biodiversidade, entre outros. Os doze escolhidos trabalharão como pós-doutorandos em grupos de pesquisa no Rio de Janeiro.

De acordo com o IBGE, cerca de 57% da população brasileira se identifica como preta, parda ou indígena. Apesar de majoritária, essa parcela da população ainda é sub-representada na carreira científica. Diante dessa realidade, o objetivo do edital é promover novas linhas de pesquisa em ecologia formuladas por pós-doutores negros e indígenas que almejam conquistar, em médio prazo, posições permanentes em instituições de ensino.

A procura surpreendeu e, diante da qualidade das propostas apresentadas, a meta inicial de apoiar oito projetos de pesquisa acabou sendo ampliada para doze: “Mostramos que, se não mudarmos a forma de seleção, cientistas negros e indígenas de excelência continuarão sendo excluídos do fazer científico e todos os candidatos continuarão parecidos. Os postos sempre acabam ocupados por quem estudou na escola certa, mora no bairro certo, frequenta as rodas certas e qualquer desvio desse caminho é penalizado”, afirma Cristina Caldas, diretora de Ciência do Serrapilheira.

Segundo os organizadores, a seleção levou em conta critérios como originalidade, riscos da pesquisa e nível de contribuição que o projeto pode trazer ao grupo que será beneficiado por ele.

Caldas afirma que os processos seletivos não devem ser baseados apenas no número de artigos publicados ou nos locais onde as pessoas se formaram: “É preciso levar em conta a capacidade de superação de desafios ao longo das trajetórias de formação, os caminhos para a concepção de suas ideias. As pessoas que estudaram inglês, tiveram formação básica forte, viajaram e conheceram diferentes culturas acabam atendendo mais facilmente aos critérios exclusivamente acadêmicos”.

As seleções regulares, acrescenta, não dão conta de enfrentar de forma adequada o debate entre mérito e excelência: “No futuro, precisaremos ajustar as seleções tradicionais de forma a contemplar essas pessoas que seguiram trajetórias diversas das esperadas. Sem essas mudanças, cientistas negros e indígenas de excelência continuarão sendo excluídos e a sociedade será privada de todo o conhecimento que eles têm a agregar”.

Descendente de indígenas e quilombolas, a geógrafa Thamyres Sabrina Gonçalves investigará como o achado de carvão em áreas de floresta que normalmente não pegam fogo pode ajudar a compreender a história evolutiva da Serra do Espinhaço, entre Minas Gerais e Bahia. A pesquisa desperta o interesse da academia porque pode oferecer indícios de uma presença humana anterior à esperada na região. Com doutorado em Agronomia pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Gonçalves afirma que pesquisadores com perfil diferente do usual podem abrir caminho para um olhar científico inovador: “É importante coletivizar os saberes e permitir que essas trocas sejam feitas de forma justa, sem que nós sejamos considerados incultos”.

Para se ter ideia da importância – e raridade – de uma trajetória como a de Gonçalves, ela conta que sempre foi a pessoa mais preta em todos os programas de pós-graduação pelos quais passou, seja como aluna regular ou em disciplinas isoladas: “Seria esperado eu ser a pessoa mais preta ao cursar disciplina na Unioeste, em Marechal Rondon, uma cidade de colonização alemã no oeste do Paraná, mas também fui a aluna mais negra da minha turma de doutorado em Diamantina, uma cidade que foi construída por mãos de escravizados, onde a maioria da população local é negra. Isso me faz concluir que há um filtro racista que impede que pessoas negras consigam chegar a esses espaços por onde passei”. A cientista diz ter assumido o compromisso, ao se tornar doutora, de quebrar essa barreira: “Não quero ser a única, não quero ser a última, não tenho interesse nessa exclusividade. Precisamos de mais pessoas pretas e indígenas nas ciências agrárias e temos que provocar isso”.

Oriundo da Paraíba e indígena da etnia Potiguara, o cientista Victor Lima Félix ingressará no grupo de pesquisas do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, gerido pela Fiocruz. O projeto buscará incorporar saberes indígenas sobre o solo para tornar as classificações formais de tipos de solo mais minuciosas e precisas: “Neste momento de grandes desafios globais, cada vez mais iniciativas veem que as saídas para muitos problemas estão no conhecimento indígena”, comenta Félix. Completa o grupo um cientista nascido na Nigéria, Bede Ezewudo, cujo trabalho analisará microplásticos no Rio Guandu, no Rio de Janeiro.

Victor Félix expressa a esperança de que o processo de seleção sirva como exemplo: “Fiquei sabendo que os candidatos da próxima seleção não terão de se autodeclarar negros ou indígenas. Isso é uma vitória. Quem sabe, com esse edital, conseguimos abrir caminho para outras iniciativas nessa direção? O futuro não está mais para amadores. Vai ser cada vez mais importante contar com uma ciência inclusiva”.

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