Antonia Quintão

Presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-Doutora pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo. Também é pesquisadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa e consultora de Diversidade e Inclusão nas Organizações.

Opinião

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Vidas negras importam

Denunciamos a violação cotidiana dos nossos direitos constitucionais, o racismo ambiental e exigimos o direito à vida

Vidas negras importam
Vidas negras importam
Concentração de ato organizado pela Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, o machismo, o genocídio e a lesbofobia, na praça Roosevelt, região central da capital paulista (Rovena Rosa/Agência Brasil)
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Quero iniciar esta coluna apresentando minhas homenagens, meu reconhecimento e profundo respeito à líder quilombola Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, alvo de um crime brutal e cruel, que envergonha, revolta e entristece todas e todos que se comprometem com a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e cidadã. A violência sem limites, que invariavelmente tem como alvo principal a população negra, usurpa os nossos direitos básicos e inalienáveis, transformando pessoas em seres descartáveis, ceifando a vida de jovens e crianças inocentes e provocando um sentimento de asfixia e angústia que parece não ter fim.

Não é possível permanecermos indiferentes às mães condenadas a viver com o luto e a dor insuportável de terem seus filhos e filhas arrancados de seus braços pela violência seletiva, que mata as crianças pretas dentro dos seus lares, sentadas na porta de casa, na rua, na escola. O inconformismo de viver em um país que insiste em desconsiderar a nossa humanidade precisa se traduzir em uma grande iniciativa ou um grande movimento pela vida e pela dignidade da população negra.

Os números da violência são insuportáveis, revelam que o enfrentamento do problema está sendo insuficiente, ineficaz ou equivocado. Não existe na Constituição Federal amparo ou justificativa para a pena de morte. É fundamental que haja apuração rigorosa das circunstâncias em que essas tragédias ocorreram, para que a lei seja cumprida e a justiça prevaleça. Cabe destacar que, apesar das tentativas de apagamento e invisibilização das mulheres negras, o seu protagonismo sempre prevaleceu. Por esta razão, não podemos deixar de reverenciar Mãe Bernadete, que tanto nos honrou com a sua coragem e perseverança na reivindicação de direitos e na denúncia da violência que alcançou o seu próprio filho, outra liderança quilombola barbaramente assassinada.

O reconhecimento das áreas quilombolas ocorreu oficialmente em 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal. O artigo 68 diz textualmente: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Apesar da lei, são frequentes os relatos e denúncias de perseguições, violações de direitos, constrangimentos e opressões. Por esta razão, as titulações dos territórios quilombolas e indígenas devem ser vistas com caráter de urgência e merecer do Estado brasileiro a mais absoluta atenção e prioridade.

As comunidades quilombolas são fundamentais não apenas para o reconhecimento dos saberes e da história da nossa ancestralidade, mas também como referência e inspiração para todos que se comprometem com a resistência, com a luta pela preservação da vida e de nossa memória histórica. Sabemos que o racismo está engendrado e arraigado nas políticas estruturais, institucionais e nas condutas culturais. Para que mudanças efetivas aconteçam, precisamos de medidas afirmativas com dimensões coletivas e que as implementações sejam acompanhadas e cobradas.

Atualmente, o conceito de racismo ambiental nos tem ajudado a compreender as implicações da interseccionalidade da questão racial e social com as injustiças ambientais, como as agressões aos bens naturais, o isolamento das populações em centros periféricos, a inexistência de serviços públicos, os desvios de recursos hídricos para abastecimento de plantações agrícolas e a contaminação do solo por uso de agrotóxicos. Quando excluídos nas zonas urbanas, possuem um acesso precário a água e saneamento básico, sendo impedidos de viver em ambiente saudável.

De forma precisa, Regina Marques de Souza Oliveira, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, caracteriza dessa forma o racismo ambiental que atinge populações quilombolas: “Empreendimentos capitalistas, contrários à cosmovisão dos povos quilombolas, roubam suas terras, saqueiam suas casas e as destroem, violentam as mulheres e humilham jovens e homens negros, indígenas e pobres. Estas violências representam a barbárie que cria o racismo ambiental, que é a negação do acesso ao meio ambiente de forma integrada ecologicamente. Ao desprezar a vida, o racismo ambiental se desenvolve nas sociedades contemporâneas no mundo inteiro. Os povos quilombolas possuem conhecimentos e estão sujeitos ao racismo ambiental, considerando que sofrem extremas violências para poder permanecer em seus territórios e fronteiras, usufruindo de seus conhecimentos e formas de vida”. •

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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