Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

A última canção

Ele era um apaixonado por música, mas perdeu o gosto desde o dia em que Gal Costa se foi

Foto: Arquivo Pessoal
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Desde o dia em que, cedo, leu a tarja na GloboNews, Gal Costa morre aos 77 anos, ele começou a perder o gosto pela música. Normalmente, quando morria um dos seus ídolos, a primeira coisa que fazia era ir na parede que acolhe seus 10.321 CDs, separar todos do cantor morto e começar a escutar, um a um. Passava o dia ouvindo a voz daquele que partiu.

Com Gal Costa foi diferente. Apesar de ter recolhido todos os seus CDs – de Domingo a Estratosférica -, alguns numa luxuosa caixa, ele empacotou tudo e passou três camadas de papel filme. A impressão que ficou foi de que nunca mais abriria aquele pacote.

Gal cantando Balancê, nunca mais!

O mesmo aconteceu dias depois. A morte de Erasmo Carlos, soube pelo alerta de sua mulher que estava ligada ao noticiário no seu home office, em frente à cozinha onde ele lavava as vasilhas que tinham ficado na pia desde o jantar.

Enxugou as mãos no pano de prato e ligou na GloboNews, que já exibia a tarja Morre Erasmo Carlos, o Tremendão da Jovem Guarda.

O ritual foi o mesmo. Empacotou todos os CDs do amigo de fé, camarada, inclusive um raro – A Pescaria – que havia comprado de uma tiragem limitada.

Ouviu pela última vez alguns de seus sucessos, de noite, no Jornal Nacional. E nunca mais.

Morreu Astrud Gilberto, morreu Jane Birkin, morreu João Donato, morreu Doris Monteiro e morreu Leny Andrade.

Agora já são sete pacotes num canto do escritório, todos eles embalados em papel filme e cobertos com páginas da Folha de S.Paulo, o único jornal de papel que ainda assina. Isso porque, no inverno, bem no finzinho da tarde, um sol fraco, mas sol, bate naquele canto do escritório.

Sobraram também sete buracos na sua parede de CDs, que ele foi preenchendo com enfeites que comprou mundo afora: um boneco de louça da gotinha da Esso, comprado em Tóquio, uma gaivota de madeira comprada em Polignano al Mare, um postal de John & Yoko no dia do Bad In, três garrafinhas de cerveja – Rosa, Marx e Trotsky –, um buda de pedra comprado na feirinha da praça Benedito Calixto, um porta-retratos em que ele aparece abraçado a Maria Bethânia e o pinguim da revista piauí, que ganhou de presente. Ele encaixou direitinho no buraco deixado por João Donato.

O cara virou uma espécie de João Cabral de Melo Neto, o João que não gostava de música. Só que ele era um apaixonado por música, mas perdeu o gosto desde o dia em que Gal Costa se foi.

Hoje ele não ouve praticamente mais nada, a não ser aquelas músicas insuportáveis que ele é obrigado a escutar toda quinta-feira no Uber, quando se dirige à fisioterapia. É muita sofrência no meio caminho entre a Lapa e a Praça Panamericana.

Ele não suporta mais e pensa em voltar a ir de ônibus que, além de ser de graça, não tem música. Um aviso diz que é proibido usar aparelhos sonoros em volume alto. Esse cartaz deveria estar dentro de todo Uber.

Hoje, antes de começar a escrever essa crônica, morreu Sinéad O’Connor. Ele respirou fundo e se lembrou de um disco que ainda está ali na parede, na letra T, já que seus CDs estão em ordem alfabética. É o primeiro disco de Tom Zé, o eterno tropicalista. Lá no meio da canção Sabor de Burrice, o baiano de Irará brada:

– Não se morre mais, cambada!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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