Editorial
A ideologia do caos
Lula confunde ele mesmo e todos nós


A personagem da capa desta edição é o simbólico Sísifo da mitologia grega a enfrentar o morro íngreme, metáfora das dificuldades da vida. Vale aqui para representar os esforços vãos do Brasil na tentativa de atingir a posição prometida pelas benesses conferidas pela natureza. A enorme pedra aceita o desafio, mas é pesada demais para a força de quem a empurra. Está fadada a voltar inexoravelmente ao ponto de partida. Neste momento, o presidente Lula enfrenta uma jornada especialmente turva. Não basta se livrar do energúmeno demente Jair Bolsonaro.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, é infinitamente mais perigoso em relação ao futuro do Brasil do que o ex-capitão, premiado por uma eleição da qual Lula não pôde participar, preso sem provas pela costumeira dupla Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Cabe acentuar que só no Brasil podem acontecer fatos como estes. E não há como negar a realidade de um país ainda tão distante da democracia e da contemporaneidade do mundo civilizado. Nestes dias, o Datafolha revela: a maioria dos entrevistados, mais de 50%, acredita no retorno dos degustadores de criancinhas amoitados atrás de cada esquina. Ou seja, segundo eles, não escapamos de um levante comunista.
Lula, decidiu dar o seu palpite a respeito. Disse que a ideologia comunista não desonra o seu partido, pelo contrário, porque a doutrina vermelha é a mesma a mover o PT. De súbito imaginamos uma boutade irônica e logo tivemos de admitir: sim, o presidente falava sério. O próprio Putin, a esta altura do campeonato, não acredita mais em bolorentas consignas.
Lira conspira contra o Brasil – Imagem: Pablo Valadares/Ag. Câmara
Severamente atingido pelos ventos internos de rebeldia, já se conforma com o papel de derradeiro czar de um império em decadência. É do conhecimento até do mundo mineral que Lula se deixa seduzir pela proximidade de um microfone pronto a transmitir palavras em liberdade, bem como de um voo internacional para defender a paz no mundo sem se importar com a concorrência de papa Francisco.
Aos meus inquietos botões pergunto qual será realmente a doutrina esposada por Lula? Admitem carecer da verdade absoluta, conquanto considerem a possibilidade de que o pensamento reinante possa envolver a teoria do caos. Alguns fatos, estes sim, representam a verdade indiscutível: o Brasil continua a disputar com alguns países asiáticos e africanos o cetro de campeão mundial da desigualdade, primeiro impedimento para qualquer afirmação democrática. O povo brasileiro é vítima desta brutal separação entre poucos ricos e dezenas de milhões de pobres, em boa parte condenados à fome e ao relento.
Putin aceita o papel de derradeiro czar do império decadente – Imagem: Alexander Kazakov/Sputnik/AFP
Muito cuidado em não tropeçar na calçada em um compatriota obrigado a dormir no chão. O racismo está presente para o recrudescimento de uma situação penosa, favorecida inicialmente pela colonização portuguesa predatória e escravagista, pela abdução violenta de milhões de habitantes africanos destinados à escravidão mais duradoura e cruel de todos os tempos. No nosso território, os capitães do mato souberam como matar índios e escravos em fuga. Não foram, decerto, aqueles dispostos a distinguir entre brancos e pretos, tidos “de cor”, como se não houvesse também amarelos e, nos Estados Unidos, os vermelhos, destinados a um inglório sacrifício nos filmes de faroeste.
Claro que não foram os brancos que mantiveram a escravidão viva com empenho e ferocidade inaudita. Hoje em dia, e de fato já há algum tempo, as entidades promovidas pelos próprios cidadãos pretos em atividades cada vez mais capilares espalhadas pelo País dedicaram-se com êxito à defesa dos seus direitos. E passos adiante foram dados até o momento a despeito das resistências explícitas da casa-grande. •
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
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