Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

O Brasil da encruzilhada Lula x Lira precisa resgatar a memória de luta

O julgamento de Bolsonaro no TSE esta semana é um ponto de partida de uma luta que alcança o Congresso e requer a mesma resistência vista no governo anterior

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o ex-presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Numa noite de maio, durante um encontro entre amigos, uma jovem economista fazia uma reflexão otimista a respeito do Brasil: “A verdade é que fomos o único país do mundo a vencer o fascismo no voto”, disse ela, convencida de que os brasileiros fizeram mais do que eleger um novo presidente em 2022. Tirou-se a reeleição de Jair Bolsonaro, forte correia de transmissão da extrema-direita global, que ganha fôlego no Legislativo de países como Alemanha, Espanha e até no Chile. 

Poucos dias depois desse convescote com a economista, seria confirmada a re-reeleição de outro autocrata, Tayyip Erdogan, para ser presidente da Turquia pela terceira vez. Erdogan adotou uma política conservadora que cerceia cada vez mais as liberdades individuais em seu país, perseguindo oponentes, a comunidade LBTQiA+, controlando os meios de comunicação. Seus adversários ainda não conseguiram tirá-lo do poder. O presidente turco venceu o pleito de 28 de maio por uma diferença de pouco mais de 2 milhões de votos, parecida com o saldo  que elegeu Lula em 31 de outubro.

Se Bolsonaro tivesse vencido, certamente seguiria os passos de Erdogan, aprofundando o desgaste e o controle das instituições democráticas, ocupando o papel de farol potente para a ultradireita na América Latina. E uma vez no cargo de presidente reeleito, não teria de enfrentar os tribunais em função da lista de crimes que cometeu ao longo do seu governo. Agora, como ex-mandatário, começa a encarar seu périplo de prestação de contas com a Justiça nesta quinta-feira, 22, quando a corte vai julgar o abuso político que cometeu por ter convocado, em julho do ano passado, embaixadores estrangeiros para semear dúvidas sobre a idoneidade do sistema eleitoral brasileiro. A cantilena contrária ao sistema eletrônico de votação deve lhe custar a suspensão de direitos políticos por 8 anos, sem perspectivas de concorrer a qualquer cargo eletivo nesse período.

Há um regozijo ao ver a justiça começando a agir depois de anos de descalabro, diante de um quase consenso de que ele será punido. Mas longe, muito longe de apaziguar o bode que permanece na sala do Brasil. Recorro à pergunta que os hispânicos repetem quando finda o capítulo de um fato qualquer, e há dúvidas sobre o futuro. Y ahora qué? 

E agora? O que deve acontecer depois de concluir que Bolsonaro vai pagar por seus crimes e não se reeleger? O ex-presidente de viés golpista, adepto da necropolítica, é apenas parte do grande nó que amarra o Brasil, o que coloca em xeque o otimismo da jovem mencionada no início deste texto. Saiu Bolsonaro, mas o espírito da necropolítica e o viés golpista ainda permanecem em grande escala no Congresso brasileiro. Seja no debate do marco temporal, que joga populações indígenas numa vala de indiferença, seja nos ataques à democracia com simulações de pedidos de impeachment de um governo que mal completou seis meses. 

A letra é cantada abertamente pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que dá recados enviesados sobre o “rendimento” dos ministérios do presidente Lula, e reforça, sempre que pode, a dicotomia entre o governo federal e o Legislativo, eleitos democraticamente em outubro do ano passado. “O Congresso (eleito) é conservador, liberal para reformas, e tem posicionamentos próprios. E o governo escolhido é progressista de esquerda. Temos de trabalhar e nos esforçar para o que nos une”, disse ele em várias entrevistas recentes. 

Como um país pode ter eleito um governo contrário à política de liberação de armas, e comprometido com a proteção das populações indígenas — criando de maneira inédita um ministério só para os povos originários — e ao mesmo tempo, um Congresso contra a demarcação de terras indígenas, pró-armas, e que adota a mesma argumentação rasteira de Jair Bolsonaro para lidar com o país? 

É uma conta que não fecha, quando um lado representa a defesa da vida, e o outro a naturalização da morte, do extermínio, seja da natureza, ou dos povos que dela cuidam. 

Gabriel Amaral Ferreira, doutorando em Direito Constitucional pela UFMG, lembra que essa escolha do eleitor não é feita deliberadamente  — “quero um presidente progressista e um Congresso conservador”. “Não é (uma opção deliberada), até porque, não faz sentido, politicamente, tendo em vista a possibilidade de os projetos progressistas serem barrados por um Congresso conservador”, afirma Ferreira, que estuda as alterações recentes no sistema político brasileiro e seus impactos, como a cláusula de barreiras. 

São muitos os fatores que influenciam a escolha de um parlamentar na urna, inclusive a mera proximidade geográfica. Mas seja por um sistema eleitoral que não encontrou seu equilíbrio, ou por uma guerra de forças desigual, o Brasil se vê agora nessa encruzilhada. E é neste momento que escolhemos fazer pressão e nos posicionar dentro dessa peleja política. 

Não precisa amar o Lula, nem mesmo querer que ele ou algum sucessor dele se reeleja. Mas é preciso fazer valer a voz da maioria para as questões mais caras que definiram esta eleição. O fim do descaso na saúde, na educação, o fim da indiferença a 33 milhões de famintos, ao genocídio indígena, à gentrificação dos espaços urbanos. E a arena da batalha, agora, está ali, no Congresso.

Vale resgatar uma memória bem recente. Em condições muito mais desfavoráveis, aprendemos a controlar uma pandemia de coronavírus com redes de informações seguras, com o movimento espontâneo de cientistas alertando a população para os devaneios do governo que estimulou a circulação do vírus, com jornais se aliando para checar as mortes diárias por covid, que o governo tratava de esconder. Houve um boom de casamentos gays, estudantes na rua para peitar cortes de verbas na educação, movimentos pró-democracia contra o golpismo do governo extrema direita. Calaram-se os militares. Não é pouco. 

É preciso fazer o mesmo caminho de contestação agora, olhando para o Congresso até tornar a grita insuportável para deputadas e deputados, deixar claro que o Brasil de verdade não é o dos algoritmos. É o Brasil de carne e osso, solidário e altivo, da empatia. 

Talvez o governo Bolsonaro tenha vindo para nos ensinar que esse país humano é mais forte que o outro. Vencer o fascismo no voto foi um grande passo, mas a guerra tem batalhas diárias sobre as quais não podemos pestanejar. Não temos o direito de recuar, e isso é bom. O caminho é longo, mas já nos provamos bons de briga. Sigamos então.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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