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A Justiça aperta o cerco a Bolsonaro, o bolsonarismo sonha em manipular a CPI

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O vazamento das imagens da câmera do andar do gabinete presidencial derrubou o general Dias. Alexandre de Moraes busca os mentores dos atos golpistas – Imagem: Redes sociais e Carol Alves Moura/STF
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A sede da Polícia Federal em Brasília foi palco, na quarta-feira 26, da abertura de um seminário sobre a segurança de governantes pelo mundo. Dez países mandaram representantes, entre eles Alemanha, Argentina e Estados Unidos. Nessas nações, a escolta presidencial é feita por civis, algo que passou a ocorrer no Brasil neste ano. Um dos primeiros atos assinados por Lula ao tomar posse foi o decreto de criação da Secretaria Extraordinária de Segurança Imediata do Presidente, equipe fisicamente próxima do petista em qualquer lugar. À frente do órgão, um delegado da PF, Alexsander Castro de Oliveira, que acompanhou Lula na viagem a Portugal, mas voltou antes para participar do seminário. Integrante da segurança do então candidato na eleição, ocupa o posto por indicação do diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, outro participante do seminário. Para Rodrigues, Ricardo Cappelli, braço-direito do ministro da Justiça, Flávio Dino, deveria ser efetivado no Gabinete de Segurança Institucional, feudo militar no Palácio do Planalto.

Até o governo Jair Bolsonaro, cabia ao GSI cuidar da segurança presidencial. Em parte, ainda é assim: na equipe que fica um pouco mais distante de Lula em eventos há fardados. A “bolsonarização” dos quartéis foi a razão para o petista não querer sua vida nas mãos de milicos. No dia em que o seminário internacional começou, Bolsonaro compareceu à PF pela segunda vez em três semanas. Antes tinha ido depor sobre as joias sauditas, agora sobre a insurreição de seus ­fiéis em 8 de janeiro. Dois dias após o quebra-quebra em Brasília, o capitão publicou nas redes sociais um vídeo com questionamentos à lisura da eleição. Logo tiraria do ar, mas era tarde. A Procuradoria-Geral da República pediu assim mesmo, e o Supremo Tribunal Federal aceitou, a inclusão do ex-presidente entre os investigados pelo 8 de janeiro, na condição de mentor e incentivador do levante.

No Supremo, outro ringue da batalha, avança o inquérito contra os invasores de 8 de janeiro

A sabotagem da confiança dos brasileiros na eleição e nas urnas coloca o capitão à beira do cadafalso no Tribunal Superior Eleitoral, onde corre o risco de perder o direito de se candidatar por oito anos. A expectativa é de que o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, não demore a levar ao plenário uma ação movida pelo PDT que acusa Bolsonaro de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. A acusação parte de uma reunião em agosto com embaixadores de dezenas de países, na qual o capitão deixou a mensagem de que a eleição seria roubada para Lula.

Moraes enxerga “evidente conexão” entre o 8 de janeiro e aquilo que se viu de mentiras e autoritarismo no governo anterior. Usou a expressão no início do julgamento no Supremo, em 24 de abril, dos cem primeiros acusados, de um total de 1.390, de cometerem alguns crimes no levante, como tentativa de golpe de Estado e dano ao patrimônio alheio. Os cem réus vão responder a ações penais. Até 2 de maio, mais 200 estarão na mesma situação. Moraes vê uma história mais longa por trás do 8 de janeiro, graças a dois inquéritos que conduz há tempos no STF, nos quais despontam parlamentares bolsonaristas: o das milícias digitais atuantes na web a espalhar fake news e aquele da quadrilha de carne e osso sabotadora da democracia. No início do julgamento dos cem acusados, citou o nome de 15 congressistas, incluídos aí dois filhos do capitão, o deputado Eduardo e o senador Flávio.

A propósito do vídeo, o pai da dupla declarou à PF que o havia publicado por engano. Seu advogado, Paulo Cunha Bueno, e seu ex-chefe da Comunicação no governo Fábio Wajngarten disseram à mídia que, na época da publicação, Bolsonaro estava sob efeito de remédios. Linha de defesa de “altíssima periculosidade”, essa de que o ex-presidente não estava “no gozo pleno de suas faculdades mentais”, pois coloca em dúvida todos os atos assinados por ele no poder, conforme o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.

Na primeira leva, o STF transformou em réus cem invasores. Outros 200 terão o mesmo destino – Imagem: Ton Molina/AFP

Histórias da carochinha como a do “engano” de Bolsonaro reverberam graças à máquina da extrema-direita nas redes sociais. O cientista político Felipe Nunes, da consultoria Quaest, prepara um livro sobre a “calcificação” das posições políticas dos brasileiros nos últimos anos e explica que esse fenômeno é resultado de um “ecossistema” informacional montado por Jair e cia. nas redes. A força das fake news na internet levou os deputados a aprovar, na terça-feira 25, um pedido de urgência para votar uma lei de combate a mentiras e discursos de ódio nas redes sociais, como Twitter e Facebook. Lei contra a qual a extrema-direita grita.

É para tentar emplacar outra história da carochinha que o bolsonarismo lutou para criar uma CPI sobre o 8 de janeiro. A comissão terá deputados e senadores e deve ser instalada nos próximos dias, após decisão do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, na quarta-feira 26. Com ela, a extrema-direita quer convencer a população de que os distúrbios de janeiro foram culpa do governo. “Alucinação”, segundo Flávio Dino, um dos alvos da turma. O proponente da CPI, o deputado de primeiro mandato André Fernandes, do PL do Ceará, é investigado no Supremo justamente por ter incitado o quebra-quebra. Na antevéspera da insurreição, havia tuitado vídeos de convocação para um “ato contra o governo Lula”, além de dizer que participaria do protesto. Depois, publicou foto de um armário de Moraes no STF, que havia sido destruído, e escreveu embaixo: “Quem rir vai preso”.

O governo, até há pouco, era contra a CPI. Achava que a comissão tiraria o foco do essencial, o debate econômico. E que remexeria numa visão aparentemente sacramentada no País: a de que houve uma tentativa de golpe em janeiro por ­fiéis do capitão. Em janeiro, 55% viam o dedo de Bolsonaro nos atos (pesquisa Datafolha). Em fevereiro, 51% (Quaest). Em março, 49% (Ipec). Passa o tempo, cai a associação. Que acontecerá se os bolsonaristas tiverem palanque para defender a “alucinação” de que o governo é o culpado? Para eles, uma pista dos supostos erros e omissões do governo em 8 de janeiro são os alertas da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, sobre o que estava por vir. Dino e o general Marco Edson Gonçalves Dias, chefe do GSI até 19 de abril, dizem não ter visto nenhum relatório da Abin a respeito. Segundo servidores da agência, de fato não houve “relatório”, entendido como documento consolidado. Como a situação era dinâmica e os fatos se sucediam, ocorreram informes disparados por WhatsApp. Quem exatamente os teria recebido? A comissão do Congresso que controla as atividades de inteligência acaba de receber esses informes, mantidos em um cofre.

Sem conseguir evitar a CPI, o Palácio do Planalto age para controlá-la. O tiro bolsonarista pode sair pela culatra

O governo mudou de posição sobre a CPI um dia após virem a público, via CNN Brasil, imagens de câmeras de segurança do Planalto, nas quais o general Dias aparece na porta do gabinete presidencial diante de alguns invasores, em atitude considerada pouco firme. O ministro da articulação política, Alexandre Padilha, conversou com líderes governistas no Congresso e pediu que mergulhassem nas negociações. Se não era possível detê-la, melhor capturá-la e ditar seus rumos. “No fim da CPI, o povo vai saber que o autor intelectual do 8 de janeiro é Bolsonaro”, afirma o deputado Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro. Se correr como o esperado, a comissão terá uma folgada maioria governista. O nome preferido dos petistas para o posto de relator é o senador Renan Calheiros, do MDB alagoano, o mesmo que infernizou Bolsonaro na CPI da Covid em 2021. Problema: Arthur Lira, presidente da Câmara, inimigo de Calheiros em Alagoas e aliado de Bolsonaro na eleição.

O capitão está na mira da Justiça, inclusive eleitoral, e de uma CPI que tinha o propósito de ajudá-lo. Seus fiéis envolvidos no 8 de janeiro estão encrencados no Supremo. Há, porém, uma categoria de bolsonaristas que ainda põe o Brasil à prova: os militares. Um enredo cujos capítulos recentes têm tudo a ver com as imagens divulgadas pela CNN, estopim de uma disputa de poder no governo. Os vídeos causaram a demissão do general Dias e alimentaram a ideia de CPI. Haveria ligação entre o vazamento e a proposta de criar a comissão? Quem divulgou os vídeos foi um jornalista que trabalhou na Câmara para o PP, ex-sigla de Bolsonaro, e para o deputado Fábio Faria, ministro das Comunicações do capitão. Dias, chefe da segurança de Lula nos dois mandatos anteriores, não as havia mostrado ao presidente, fato que mais irritou o petista, conforme relatos de auxiliares. Quem teria vazado as imagens?

A base aliada quer emplacar o senador Calheiros na relatoria da CPI do 8 de janeiro. O interino Capelli opera a limpeza ideológica do GSI – Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado e Arquivo/MJSP

No Planalto, suspeita-se que tenha sido algum militar do próprio GSI, composto de 900 funcionários. Uma pista é que a primeira versão dos vídeos expunha o rosto do general Dias, mas não o de outro integrante do gabinete, o capitão do Exército José Eduardo Natale Pereira, que aparece a oferecer água aos invasores. Pereira era o coordenador-geral de Operações de Segurança Presidencial. Na campanha, havia participado do lançamento da candidatura de Bolsonaro. Estava no GSI desde 2020. Foi um dos legados deixados para o governo Lula por um dos generais mais bolsonaristas, Augusto Heleno, ex-chefe do GSI. Não foi a única herança. Três delas acabam de ser degoladas pelo ministro interino, Ricardo Cappelli: o contra-almirante Marcelo Gomes da Silva, ex-secretário de sistemas, o brigadeiro do ar Max Cintra Moreira, ex-secretário de assuntos de defesa, e o coronel do Exército Gladstone Barreira Jr., ex-diretor do departamento de gestão.

Dias queria seis meses para “desbolsonarizar” o GSI, eis por que a segurança especial de Lula, aquela comandada por um delegado, foi criada para funcionar até junho. O delegado trabalha para que ela seja eternizada. O 8 de janeiro parece ter minado a confiança do presidente e de subordinados depositada no general. Em março, Lula tirou do GSI a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, uma das armas mais poderosas do feudo militar no Planalto. Com a demissão de Dias, os militares não apenas querem impedir a efetivação de Cappelli ou de qualquer outro civil no gabinete, mas recuperar a Abin. Essas aspirações têm sido objeto de um show de plantação de notícias nos últimos dias, e no governo há quem tenha certeza de se tratar de obra do ministro da Defesa, José Múcio, e do comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva. “O GSI dá aos militares acesso ao topo do poder (faz parte da estrutura da Presidência), os militares nunca abrem mão de ter acesso ao topo do poder”, disse o ex-deputado petista José Genoino em um debate ­virtual na segunda-feira 24.

A manobra bolsonarista na CPI está ameaçada de dar com os burros n’água. As digitais do general Heleno e de Anderson Torres estão espalhadas por todos os cantos – Imagem: Washington Costa/ME, Arquivo/MJSP e Bruno Spada/Ag.Câmara

O favorito da caserna para o GSI é o general da reserva Marcos Antônio Amaro dos Santos. Ele se dá bem com Paiva, antecedeu-o no Comando Militar do Sudeste. Foi chefe da segurança de Dilma Rousseff. Esta extinguiu o GSI no início do abortado segundo mandato, mais um motivo de bronca dos quartéis com a presidenta, e botou Amaro à frente do que restou do órgão, espécie de RH militar. O general foi levado por Múcio e Paiva a Lula para uma conversa de dez minutos antes de o presidente ir para Portugal, em 20 de abril. É descrito como arrogante por ex-colaboradores de Dilma. Eles lembram que o general proibiu um ato de desagravo à petista no Planalto no ­impeachment. Um coronel da reserva, Marcelo Pimentel de Souza, chama-o de “bolsominion”. O que talvez explique por que o general tenha tido na equipe da segurança de Dilma um militar que hoje é um deputado federal bolsonarista da gema, o gaúcho Luciano Zucco, tenente-coronel do Exército e proponente da CPI do MST, recém-criada na Câmara.

Amaro defende a volta da Abin para o GSI, ideia que os servidores da agência rejeitam. Eles preferem um comando civil, acham que fardado não entende de inteligência estratégica, ainda mais no mundo contemporâneo, cheio de disputas ­geopolíticas complexas. Recorde-se que o GSI não foi capaz de impedir a espionagem de Washington contra Dilma e a Petrobras. O relatório final do governo de transição propunha unificar a segurança do presidente e a inteligência do Estado em um único órgão sob comando civil. É o modelo norte-americano, o chamado Secret Service, objeto de debate no evento de 26 de abril na PF. Alguns agentes da Abin integraram o governo de transição.

A agência está desde março sob a batuta da Casa Civil. E vive situação confusa. Lula escolheu um delegado para ­chefiá-la, Luiz Fernando Corrêa, diretor-geral da PF em seu segundo mandato. Corrêa até se apresentou aos servidores da agência, em uma reunião no auditório. Para assumir o cargo de fato, precisa, porém, ser sabatinado e aprovado pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. O presidente da comissão, Renan Calheiros, decidiu segurar a sabatina por causa do nome pinçado por Corrêa para ser o número 2 da Abin, o delegado Alessandro Moretti. Para Calheiros, trata-se de um bolsonarista. O senador pretendia falar do assunto com Lula durante a viagem a Portugal (Calheiros esteve na comitiva). Sem a aprovação de Corrêa, Moretti é quem comanda a agência desde março.

Apesar da conivência e da inoperância de oficiais no 8 de janeiro, os militares não querem abrir mão do controle do GSI

O delegado foi o número 2 de Anderson Torres na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal entre janeiro de 2019 e junho de 2020. Quando Torres foi ministro da Justiça de Bolsonaro, de abril de 2021 a dezembro de 2022, ­Moretti ocupou dois postos estratégicos na PF: a diretoria de Tecnologia da Informação e a de Inteligência Policial. Eis suas credenciais “bolsonaristas”. Torres foi em cana há pouco mais de cem dias, em caráter preventivo, por ordem de Alexandre de Moraes. Sua soltura foi negada ­duas vezes pelo juiz. Na quarta-feira 26, a defesa entrou com um pedido de ­habeas corpus contra a última negativa. Disseram que Torres está com problemas psíquicos e há risco de suicídio. O ex-ministro teve a prisão decretada logo após o levante de 8 de janeiro. Moraes viu “omissão dolosa” do então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, que tinha viajado na antevéspera para a Flórida, onde Bolsonaro curtia o autoexílio. A suspeita é de que tenha preparado o terreno para o levante e dado no pé.

Moraes justifica a prisão preventiva com dois argumentos. Um, a falta de colaboração de Torres enquanto investigado. O ex-ministro negou-se por um bom tempo a dar à polícia as senhas do celular e e-mail. O outro argumento é a existência de depoimentos e indícios de participação de Torres no levante de 8 de janeiro e em seus preparativos. Dois exemplos: a chamada “minuta do golpe” e a viagem dele à Bahia, às vésperas do segundo turno da eleição, a fim de pedir à PF local apoio à operação que a Polícia Rodoviária Federal faria nas estradas no dia da eleição. A operação tinha o objetivo de atrapalhar o trânsito de eleitores de Lula no estado que deu ao petista a maior vantagem sobre Bolsonaro, 3,7 milhões de votos. Os policiais que investigam o ex-ministro descobriram que a inteligência da pasta da Justiça sob Torres havia elaborado um mapa da votação no primeiro turno que municiou a ação da PRF. O mapa foi obra da então chefe da inteligência da pasta, a delegada Marília Ferreira Alencar, mais tarde subordinada de Torres no governo do Distrito Federal. O ex-secretário deveria ter prestado depoimento à PF na segunda-feira 24 sobre a operação da PRF, mas o adiou, por alegados motivos de saúde.

Torres vai se tornar um delator? É o que se pergunta em Brasília. •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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