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Desdobramentos supremos

No julgamento dos acusados dos atos golpistas de 8 de janeiro, é importante não transformar algozes em mártires por conta de eventuais abusos da Justiça

Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil
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O Supremo Tribunal Federal começou a julgar virtualmente o recebimento das denúncias apresentadas pela Procuradoria-Geral da República contra os atos do fatídico dia 8 de janeiro. Ou seja, a decisão de abrir ou não as ações penais ocorrerá sem as liturgias do ambiente presencial e da visibilidade pública.

No Brasil, há uma tormentosa tradição que deve ser reconhecida. Em geral, ficamos entre a impunidade e o abuso do poder. Parece ser impossível não descambar para os vícios extremos. Não há, obviamente, inconstitucionalidade ou ilegalidade na realização de julgamentos virtuais. Sem que adentremos no mérito de ser correta a realização de julgamentos penais de forma pública, em sendo uma prática habitual no Brasil, como bem destacou Alberto Zacharias Toron em recente artigo, não há sentido que um caso de tamanha magnitude não seja amplamente acompanhado pela população. Nas suas palavras, é preciso um julgamento público e transparente como a luz do dia.

Todos os cidadãos deveriam ter, para além do linguajar estritamente jurídico, amplo acesso às razões dos advogados e aos fundamentos dos julgadores. Estamos construindo a nossa história democrática em suas vicissitudes. Ademais, mesmo que protelatório e custoso para a administração da Justiça, é preciso que, sem apressamentos, tenhamos o tempo necessário para o cumprimento dos ritos. A sustentação oral é um momento relevantíssimo da plena defesa, razão pela qual não pode ser colocada em segundo plano.

De todo modo, as preocupações quanto aos desdobramentos do dia 8 de janeiro não se encerram nessa questão. Existem problemas até mais graves. Ainda temos 294 presos preventivamente. O Brasil já foi sancionado pelas Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos por banalizar prisões preventivas. Cerca de 40% da nossa população carcerária, a terceira maior no mundo, decorre de aprisionamentos dessa natureza. Até que ponto atendemos aos padrões civilizados na relação entre o Estado e os indivíduos?

Nossa democracia e os símbolos dos poderes constituídos da República foram, sem precedentes na nossa história, desafiados. Atos de violência visaram, para além do mero inconformismo com o processo eleitoral que elegeu o presidente Lula, implementar um golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito. Inexistem dúvidas da materialidade dos crimes. Entretanto, resta a prova da autoria.

As prisões preventivas foram adequadas quando decretadas. Era preciso interromper a continuidade do processo golpista. Entretanto, as razões não subsistem na maior parte dos casos, salvo, eventualmente, em relação aos que comandaram e financiaram os atos golpistas. Na medida em que a maioria hoje aprisionada não possui referido perfil delitivo, o correto seria soltá-la e impor o cumprimento de medidas cautelares que dificultem ou impeçam qualquer continuidade de ações dessa natureza. Por exemplo, a Justiça pode valer-se de tornozeleiras eletrônicas, da apreensão de passaportes e, ainda, da proibição do uso da internet. Medidas cautelares como essas certamente seriam suficientes para possibilitar a tramitação do processo e o impedimento da continuidade delitiva.

É absolutamente necessária a defesa da democracia. O Supremo merece, sem favor algum, o reconhecimento do seu invulgar papel em sua defesa. Por outro lado, é importante que algozes não sejam transformados em mártires por conta de eventuais abusos. A Constituição deve ser cumprida, evitando-se a degeneração do direito. Esta, bem como a perda da autonomia em face das inflexões extrajurídicas de natureza política e estratégica, deve dar lugar à realização do direito por seus próprios fundamentos. É preciso que reconheçamos e rechacemos medidas de exceção no interior das rotinas democráticas e da processualística penal, que, imersas em decisões fragmentadas e cirúrgicas, são acionadas sob uma aparência de juridicidade. A medida de exceção é direito no plano estrutural, não no plano funcional.

No plano político, a geração de mártires golpistas é ruim para a história do Brasil. É importante que sejam punidos com rigor, mas por meio do sagrado devido processo legal. Sob essa perspectiva, as prisões preventivas não podem, exemplificativamente, ser transformadas em mecanismos antecipatórios de cumprimento de pena, o que deve pressupor, necessariamente, o trânsito em julgado da sentença condenatória. O olhar para o futuro requer incondicional compromisso com os direitos fundamentais. •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desdobramentos supremos’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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