Política
Depois do tsunami
O lulismo traça planos para recuperar o protagonismo internacional do Brasil arruinado por Bolsonaro


Um dia após Jair Bolsonaro cumprir a tradição do Brasil e abrir a Assembleia-Geral das Nações Unidas, Lula participou de encontros em São Paulo reveladores da expectativa mundial em relação a quem estará naquele mesmo púlpito em Nova York no próximo ano. O ex-presidente reuniu-se com diplomatas dos BRICS (exceto China), na sequência encontrou representantes de cinco nações europeias (Alemanha, França, Holanda, Polônia e Suíça) e, por fim, conversou com o embaixador interino dos Estados Unidos, Douglas Koneff. Seu principal conselheiro internacional, o ex-chanceler Celso Amorim, esteve nas conversas. Em seguida, na quinta-feira 22, viajou a Brasília para trocar ideias com embaixadores de países latino-americanos. Estes queriam saber quem deveriam procurar para cumprimentar o petista em caso de vitória nas urnas e, claro, como seria a política externa em um novo mandato de Lula.
Entre colaboradores do ex-presidente e de Amorim, comenta-se que a defesa do meio ambiente e da Amazônia e os desafios da mudança climática estarão no centro da futura política externa. Bandeira a ser empunhada em companhia de dois vizinhos de governos progressistas, a Colômbia de Gustavo Petro e o Chile de Gabriel Boric. O tema ambiental é o mais importante hoje na Europa, por exemplo, e uma das causas do repúdio das finanças globais ao Brasil de Bolsonaro. Ministra do Meio Ambiente no governo Dilma Rousseff, Izabela Teixeira é a favor da criação de uma Secretaria de Emergência Climática ligada ao presidente. Defende ainda que o governo eleito em outubro aproveite a Conferência da ONU para Mudanças Climáticas, a COP-27, em novembro, no Egito, para mostrar ao mundo o engajamento na área.
No time lulista, avalia-se que dois outros assuntos exigiriam uma resposta nos primeiros dias de governo: a adesão do Brasil à OCDE, clube de nações ricas e simpatizantes, e o acordo Mercosul-União Europeia. São temas que tomaram corpo durante o mandato tampão de Michel Temer e avançaram sob Bolsonaro. O PT faz ressalvas: as iniciativas reduzem a margem de manobra interna (em relação ao gasto público, no caso da OCDE, e na política industrial, no caso do acordo comercial). É possível que, com Lula, o Brasil desista da OCDE. Quanto ao entendimento com a Europa, o ex-presidente disse na terça-feira 20 ao Canal Rural que em seis meses o concluiria. Declaração para angariar boa vontade no agronegócio, mas que contém uma sutileza, conforme lulistas. Pode ser concluído desde que os europeus aceitem certas condições. Do jeito que foi costurado no governo Bolsonaro, não.
Se voltar à Presidência, Lula dará peso aos BRICS (o Brasil sediará uma cúpula em 2023 ou 2024) e à integração regional. Com Bolsonaro, saímos da Celac, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos. Em 23 de janeiro, o Grulac, espécie de subgrupo latino-americano da ONU, terá uma reunião e um Brasil de Lula o prestigiaria. Um colaborador do petista para a área externa aposta que as relações internacionais teriam uma diferença quanto ao período de 2003 a 2010. Antes, o Brasil melhorou a vida da população e valeu-se disso para cacifar-se no xadrez global. Agora, a política exterior seria usada como elemento de disputa interna, pois o bolsonarismo age assim e a extrema-direita tem articulação planetária. O norte-americano Steve Bannon, guru do extremismo, acaba de dizer à BBC que é “fascinado” por Lula, em razão do carisma e do perfil trabalhista.
O comício no funeral da rainha Elizabeth II e as mentiras na ONU foram o grand finale da antidiplomacia bolsonarista
E os nomes de uma futura política externa de Lula? Amorim é favorito para voltar a ser chanceler. Gosta da ideia e não recusaria uma convocação do ex-presidente, mas acredita que a embaixadora Maria Luiza Viotti seria um bom nome para o cargo. A diplomata é, desde 2017, chefe de gabinete do secretário-geral da ONU, o português António Guterres. Vozes progressistas no Itamaraty defendem que o posto fique com uma mulher e citam a embaixadora Irene Vida Gala como opção. Há concorrentes de fora da diplomacia. Um deles é o economista Aloizio Mercadante, coordenador do programa de governo lulista. Alternativa que desponta mais como uma solução para mantê-lo longe da área econômica. Outro é Jaques Wagner, presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado e constantemente escalado para missões internacionais em nome de Lula. Coube a Wagner negociar com a embaixada da França a reunião do ex-presidente com Emannuel Macron em novembro do ano passado. O senador fala francês e inglês. Mercadante, não.
Um rosto de fora do círculo lulista surgiu como possível colaborador. Trata-se de Hussein Kalout, professor de Relações Internacionais e secretário de Assuntos Estratégicos de Temer. Sua equipe tinha um ex-porta-voz de Lula, o diplomata Marcelo Baumbach, e um funcionário do futuro governo Bolsonaro, Marcos Degaut, secretário de Produtos de Defesa até agosto. Degaut foi demitido por Kalout, em 2018, em razão de desentendimentos e consta que nunca mais se falaram. No Itamaraty há certa bronca com o professor. Sentimento recíproco. No fim do governo Dilma, Kalout tinha o apoio da presidenta para concorrer ao cargo de relator especial da ONU para a Palestina e sua candidatura foi boicotada pela diplomacia de carreira.
“A política externa do governo Bolsonaro é trágica para o Brasil, nos alijou dos principais tabuleiros internacionais e precisa ser demolida”, diz Kalout. Segundo ele, o capitão “destruiu todo o capital político” do País na América do Sul, ao cooperar, entre outras, com a tentativa de golpe dos EUA na Venezuela, em 2019, disfarçada de ajuda humanitária. O vácuo de liderança deixado na região pelo Brasil permitiu o avanço da China. Pequim é hoje o maior parceiro comercial da Argentina. Detalhe: não há embaixador chinês em Brasília desde fevereiro. Com Washington, Bolsonaro foi subserviente a Donald Trump e antagoniza abertamente Joe Biden, atitudes nada pragmáticas (Tio Sam também está sem embaixador efetivo aqui desde julho de 2021). A África foi esquecida. Na ONU, votamos contra as mulheres.
De Nova York para o mundo: Bolsonaro fica cada vez mais internacionalmente famoso – Imagem: US Network for Democracy in Brazil
Esse desastre teve um grand finale com a ida de Bolsonaro a Londres para o funeral da rainha Elizabeth II e a Nova York, para a Assembleia das Nações Unidas. Na ONU, Bolsonaro atacou Lula e o PT. Disse que a “esquerda” causou prejuízos de 170 bilhões de dólares à Petrobras e que ele “extirpou a corrupção sistêmica que existia” no Brasil. E desfiou mentiras. Uma delas: “Durante a pandemia da Covid-19”, disse, seu governo “não poupou esforços para salvar vidas”. O Tribunal Superior Eleitoral proibiu-o de usar o discurso na disputa pela reeleição, a pedido das campanhas de Ciro Gomes e Soraya Thronicke. Motivo: o candidato à reeleição valeu-se da posição de governante para produzir o material, concorrência desleal.
O TSE decidiu o mesmo a respeito do discurso na sacada da embaixada do Brasil em Londres, a pedido das campanhas de Lula e Soraya. Lá, Bolsonaro falou 15 segundos sobre a morte da rainha e, nos dois minutos seguintes, disparou coisas do tipo: “Não tem como não ganharmos no primeiro turno”. O funeral era um momento de empatia mundial com o Reino Unido como não se via há uma década, desde a Olimpíada de Londres, em 2012. De lá para cá, o país tornou-se isolacionista, vide a saída da União Europeia. Bolsonaro e seus fãs contribuíram para macular a ocasião. Escandalizaram os fleumáticos britânicos.
O aposentado Charles Harvey, de 61 anos, foi hostilizado por fiéis do capitão, ao passar em frente à embaixada do Brasil e interceder numa discussão entre brazucas. Um destes criticava Bolsonaro, enquanto os demais defendiam-no. A turba fiel ao presidente mandou Harvey calar-se. “Vocês estão na Inglaterra, demonstrem alguma porra de respeito, é o dia do funeral da rainha”, reagiu, tudo filmado por jornalista da BBC. Em outro vídeo, uma senhora protestava contra a presença de Bolsonaro em seu país, quando um fã do capitão sugere: “Por que você não vai para a Venezuela?” Ambientalistas brasileiros que protestavam na porta da embaixada precisaram de proteção policial, para não apanhar. “Animais raivosos”, definiu Ali Rocha, uma das manifestantes, ao UOL.
A mídia inglesa, de direita e esquerda, destacou o óbvio: o capitão quis tirar proveito eleitoral do funeral. The Times: “Bolsonaro quebra luto para ganhar pontos políticos”. Daily Mail: “Fez um comício em tom agressivo da janela da residência do embaixador do seu país, incensando uma multidão com bandeiras”. The Independent: “Aproveitou a viagem a Londres para tentar convencer os eleitores indecisos de sua importância internacional, levando sua campanha política para a viagem”. The Guardian: “Voou para Londres para discursar aos seus apoiadores sobre os perigos dos esquerdistas, do aborto e da ‘ideologia de gênero’”. Ao comentar o noticiário britânico, o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, disse tratar-se de “inveja de um presidente forte, porque eles têm um governo fraco”. Um diplomata desse “governo fraco” (da direita) fez chegar ao time de Lula que o petista não pode excluir o Reino Unido da primeira viagem que vier a fazer à Europa, caso eleito. Ouviu que o país deveria tê-lo convidado quando o ex-presidente fez um tour europeu em 2021.
A campanha de Lula nega uma “caça às bruxas” no Itamaraty, mas há decisões que precisam ser investigadas
Os britânicos estão sem embaixador em Brasília desde março. Nosso chefe diplomático em Londres, Fred Arruda, deu um show de sabujice no funeral. Levou de carona o pastor Silas Malafaia, integrante da comitiva presidencial, e gravou ao lado dele um vídeo no qual dizia ser uma “enorme honra” a “companhia tão ilustre no carro”. O embaixador do Brasil na Espanha, Orlando Leite Ribeiro, tem vocação parecida. Cancelou um evento que ocorreria no dia 15 em Madri, alusivo aos 200 anos do Brasil. Um dos convidados da cerimônia, que seria realizada em parceria com a embaixada de Portugal, era um escritor brasileiro, Paulo Roberto Pires, autor do livro Diante do Fascismo, sobre o governo Bolsonaro. Até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 22, fazia uma semana que o jogador brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, tinha sido alvo de racismo e Ribeiro não havia dito uma única palavra em defesa do futebolista.
Arruda é embaixador em Londres há quatro anos, um a mais do que o costume diplomático. Ouve-se no Itamaraty que o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, quer o posto ao deixar o governo. Foi a rota de fuga de Arruda no fim da gestão Temer, de quem era assessor especial. Embaixadores colaboracionistas do bolsonarismo traçaram há meses planos de ocupar embaixadas vistosas no crepúsculo do capitão, como CartaCapital relatou em junho. De uma lista de 13 nomes e os cargos almejados, destacam-se quatro. Achilles Zaluar Neto, chefe de gabinete de França, quer o Vaticano. Problema: Lula tem relação pessoal com o papa Francisco. Hélio Vitor Ramos Filho, embaixador em Roma, cobiça Buenos Aires. Problema: Lula é amigo do presidente Alberto Fernández. Paulino Carvalho Neto, subchefe de Assuntos Multilaterais, sonha com Paris. Problema: Lula esteve com Macron, Bolsonaro despreza o francês. Fernando Simas Magalhães, secretário-geral do Itamaraty, ambiciona Roma.
As indicações de Zaluar, Ramos e Magalhães estão no Senado. Diplomatas comentam que os 13 nomes da lista farão lobby para apressar uma decisão da Comissão de Relações Exteriores. Na terça-feira 20, a comissão elegeu nova presidente, Margareth Busetti, do PP de Mato Grosso, em troca à colega de partido Kátia Abreu, de licença do mandato em busca da reeleição em Tocantins. Ganhe ou perca, Kátia voltará a Brasília em outubro. Os embaixadores colaboracionistas pretendem resolver tudo com Margareth até 7 de outubro. O time de um futuro governo Lula permitirá o rateio do filé diplomático?
Amorim disse em julho que não haverá “caça às bruxas” no Itamaraty, caso Lula volte. Mas, comenta um diplomata, não caçar bruxas é diferente de premiá-las. E salienta: os três chanceleres de Dilma foram enviados a postos menores por Bolsonaro. Antonio Patriota está no Egito, Luiz Figueiredo Machado, no Catar, e Mauro Vieira, na Croácia. Para outro diplomata, pode até não haver caça às bruxas, mas três temas merecem apuração: a diplomacia da cloroquina, o apoio ao golpe na Bolívia em 2019 e o voto brasileiro, em 2020, em um norte-americano contra um argentino, para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Nunca, em 60 anos, um ianque alcançara o topo do BID.
Em outubro de 2020, o primeiro chanceler bolsonarista, Ernesto Araújo, disse na formatura de diplomatas: se a política externa do Brasil “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. Essa será a herança deixada por Bolsonaro ao sucessor. Missão dada, missão cumprida. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Depois do tsunami”
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