Editorial

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Intérprete de si mesmo

Bolsonaro é o ator que escolhe seu próprio papel

Intérprete de si mesmo
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Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP
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CartaCapital tem por Lula o afeto de uma longa amizade, mas discorda da política da conciliação por ele praticada quando, na nossa opinião, sem confronto o Brasil não resolverá o seu maior problema, a condição de o segundo mais desigual do mundo, a criar um desequilíbrio social monstruoso, adverso à prática da democracia digna de um país contemporâneo do mundo. Donde nosso tradicional apoio a Lula no combate à candidatura de Bolsonaro nas eleições já iminentes, conforme estabelecido pelo calendário aplicado depois do ­impeachment de Dilma Rousseff e da tomada do poder pelo usurpador Michel Temer.

A prioridade absoluta ainda é a derrota do energúmeno demente que nos governa e nos envergonha. Impávido, o ex-capitão leva mundo afora seu sorriso alvar. O bestialógico que ele pronuncia diante de plateias importantes tornou-se chacota entre os civilizados. Nesta pantomima grotesca, recomenda-se entender a presença, por trás da encenação, da certeza do dever cumprido, sintoma gritante da ­doença incurável do beócio-mor. Se a vitória de Lula vai significar o fim de Bolsonaro, de imediato que bem venha. Embora dela resulte um governo conciliador, nas circunstâncias de linha oposta à desejável.

O Brasil pagará por isso, mas, por enquanto, não há outra solução à vista. A conciliação é a sina do próprio País: não somos de briga por índole, conforme as regras do relacionamento entre casa-grande e senzala e sobrados e mocambos. Bolsonaro é uma metralhadora de mentiras, pronunciadas de cara lavada como mandam sua grosseria e ignorância, a produzirem a impressão acabrunhadora de que é quanto merecemos. Nova York esbaldou-se ao recebê-lo, a projetar a imagem do palhaço global em pontos vistosos da cidade. Ostentavam legendas ilustrativas, entre elas, lacônica e feroz: Brazilian Shame, Vergonha Brasileira. Comparado com ele, Donald Trump é um pensador refinado.

Paramentados para as exéquias da rainha Elizabeth – Imagem: Jonathan Hordle/PA/FC&DO

Mas há também quem, na escala do conhecimento humano, o catalogue abaixo dos lêmures de Madagáscar ou dos elfos dos bosques nórdicos. Reconheçamos, entretanto, a eficácia do desempenho da personagem chamada a interpretar o seu próprio papel, arcado com convicção e denodo. Tudo aquilo que possa parecer caco do ator consumado de verdade faz parte do rol soletrado com vigor. Entendamos, contudo, que o ex-capitão em hipótese alguma pretende desafiar o mundo: nada disso, ele traz à tona todos os maus hábitos, as sandices e a agressividade inútil da sua vida anterior de parlamentar destrambelhado.

Se o nosso presidente da República comete uma gafe diplomática imperdoável à luz do cerimonial e quase abraça o soberano do Reino Unido, ele passa a entender que a mesura é manifestação da nunca assaz louvada cordialidade brasileira. Tampouco hesita em convidar o chamado pastor Silas Malafaia a acompanhá-lo à cerimônia do enterro da rainha ­Elizabeth, ou a Nova York, já que lhe parece normal buscar a companhia de quem bem entende. A total falta de noção das circunstâncias de cada evento é algo absolutamente normal na visão do energúmeno, sintoma da sua doença incurável.

O ex-capitão tem uma visão peculiar a respeito do que compete a um presidente da República. Resta o fato: o Brasil o elegeu. Já o conhecia como parlamentar e o sabia inconfiável. Mesmo assim foi ele o escolhido, na ausência de um candidato mais convincente e ele, a manter o seu sorriso alvar, cumpriu a complexa tarefa de interpretar a si mesmo, sem maiores retoques. Como foi possível? Na falta de Lula, submetido aos delírios de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, tardiamente condenados pelo STF, até então partícipe do golpe contra uma presidenta democraticamente eleita, no vácuo entrou o energúmeno demente, mesmo porque o País carecia do líder capaz de lhe abrir os olhos e a mente. Vítima é o povo brasileiro, refém da ignorância e da miséria. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Intérprete de si mesmo”

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