Mundo
Não ao futuro
Uma maioria expressiva rejeita a nova Constituição e a esquerda busca um bode expiatório para a derrota


Três anos no Chile parecem uma eternidade. No domingo 4, saudosos pinochetistas agitavam bandeiras e promoviam uma sinfonia de buzinas na Avenida Bernardo O’Higgins, ou simplesmente Alameda, principal via da capital Santiago. Quase não se viam chilenos de origem indígena em meio à multidão que celebrava a vitória incontestável do “não” à nova Constituição elaborada para enterrar de vez a carta autoritária e neoliberal imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet: 61,9% dos eleitores rejeitaram a proposta da Assembleia Constituinte. Nem parecia a mesma rua, a mesma cidade e o mesmo país de 2019, quando manifestantes inflamados ocuparam por semanas a Alameda e a transformaram em um símbolo da insatisfação popular com um modelo econômico que, a despeito de ter produzido uma das rendas per capita mais elevadas do Cone Sul, cerca de 13 mil dólares, só beneficia uma minoria.
Os protestos de 2019 moveram as placas tectônicas da política chilena. A Assembleia Constituinte, aprovada por 78% dos eleitores em um referendo em agosto do ano seguinte, nasceu da pressão das ruas, assim como a candidatura vitoriosa de Gabriel Boric, político de esquerda de 36 anos forjado no movimento estudantil e com ideias que superam o bolorento caudilhismo sul-americano e conceitos ultrapassados dos tempos da Guerra Fria. A esquerda mundial voltou os olhos para o Chile, mas, cinco meses após a posse de Boric, o medo venceu a esperança. “Além das legítimas divergências, sei que prevalece a vontade de diálogo e encontro”, contemporizou o presidente em cadeia nacional de rádio e tevê na noite do domingo. “O povo não ficou com a proposta de Constituição que a convenção apresentou ao Chile e, portanto, decidiu rejeitá-la de maneira clara nas urnas. Mas deixemos para trás maximalismos, violência e intolerância.”
A rejeição ao trabalho da Constituinte confunde-se com a decepção inicial em relação ao governo. A crise econômica aprofundada pela pandemia, associada à recente disparada da inflação, jogou a popularidade de Boric na sarjeta. No fim de junho, apenas 24,6% dos chilenos aprovavam a gestão do presidente empossado em março. Sem forças para influenciar no plebiscito, resta ao jovem mandatário tirar lições do episódio. No pronunciamento oficial em que aceitou humildemente a derrota, Boric afirmou ter entendido o recado dos eleitores. Dois dias depois, na terça-feira 6, iniciou uma reforma ministerial com a troca de quatro auxiliares. “Fazer frente a esses importantes e urgentes desafios exigirá ajustes rápidos em nossas equipes governamentais”, declarou. Mais difícil será encontrar maneira de retomar ainda neste mandato o debate sobre uma nova Constituição, embora a maioria dos chilenos deseje a substituição da Carta pinochetista e o presidente tenha garantido que a luta continua, companheiro: “Estou empenhado em fazer tudo da minha parte para construir, juntamente com o Congresso e a sociedade civil, um novo caminho constituinte”. Após o fim da ditadura, o Parlamento conseguiu excluir os artigos que exacerbavam os poderes do aparato de repressão e limitavam os direitos políticos e individuais, mas os capítulos econômicos ultraliberais, redigidos por egressos da Escola de Chicago, continuam praticamente intactos. O jogral entre a Concertácion, frente de centro-esquerda, e representantes da direita liberal que vigorou desde a derrubada de Pinochet engessou o sistema e impeliu os governos a promover retoques cosméticos no “celebrado” modelo chileno – até a explosão dos protestos de 2019.
“Sei que prevalece a vontade de diálogo e encontro”, minimizou o presidente Gabriel Boric
Enquanto os derrotados nas últimas eleições presidenciais e os mercados celebravam o resultado do plebiscito – na segunda-feira 6, a Bolsa local subiu mais de 3% e o peso valorizou-se ante o dólar –, a esquerda lambia as feridas e iniciava a habitual caça às bruxas para identificar os culpados pelo vexame nas urnas. Para certa linha de pensamento, a responsabilidade pesa sobre os ombros do grupo de constituintes que teria preferido enfatizar questões identitárias a focar nos direitos básicos dos cidadãos, entre eles saúde, educação e previdência. Não que os temas econômicos tenham sido esquecidos. Ao contrário. O texto previa a criação de um SUS chileno, majoritariamente público, e alterava o modelo de aposentadorias: a capitalização individual, que condena a maioria dos pensionistas a receber menos do salário mínimo local, de 400 dólares, seria substituído por um sistema tripartite, baseado em contribuições proporcionais dos trabalhadores, das empresas e do governo. Os eleitores foram, no entanto, bombardeados por mentiras e distorções a respeito de pautas de costume e identidade contemplados na proposta: a criação de um Estado plurinacional, com reconhecimento da Justiça indígena – as etnias representam 12,8% da população –, a liberação do aborto e os mecanismos de democracia direta e paritária.
O historiador Célio Turino assistiu in loco as polêmicas em torno da nova Constituição. Nos últimos meses, a convite do governo Boric, o brasileiro acompanhou a implementação no país de um programa semelhante aos pontos de cultura criados durante os mandatos petistas. No Twitter, Turino corroborou a tese de que os defensores do processo constituinte falharam na comunicação e foram atropelados pela rede de desinformação dos opositores. “Inegavelmente, as forças pró-Constituição caíram na armadilha de dar enfoque a conceitos e procedimentos ainda não plenamente compreendidos pela população e falaram pouco sobre as conquistas sociais e econômicas de interesse da maioria”, escreveu. “Os defensores do Apruebo ficaram enredados na proteção da pauta de costumes, rebatendo fake news e firulas. Também abriram a guarda na redação ambígua de algumas questões, justas, mas que necessitavam de melhor explicação e aprofundamento, como plurinacionalidade e povos indígenas, gênero e direitos da natureza.”
Seria, no entanto, ingenuidade ignorar a influência do “gabinete do ódio” chileno e da mídia dominante na esmagadora rejeição ao projeto. O mecanismo profissional de mentiras e boatos nas redes sociais não encontra barreiras de contenção na América do Sul. Funcionou para implodir o acordo de paz na Colômbia, pavimentou a vitória de Bolsonaro no Brasil e agora produz estragos no Chile. “Eu não culparia o texto”, declarou à Deutsche Welle a especialista em processos constitucionais Ester Rizzi, da Universidade de São Paulo. “Ele é bastante democrático, mas criou-se uma narrativa de relação com ditaduras de esquerda. Foi dito que o país iria virar uma Chilenzuela. De alguma forma, conseguiram associar essa nova Constituição a um processo autoritário. Tinha também uma coisa de achar que a Carta dividia os cidadãos, punha em risco a unidade do Chile.” A sombra de Pinochet paira sobre os Andes. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Não ao futuro “
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