Editorial
O privatizador
Ao entregar a Embratel ao capital estrangeiro, FHC está na origem da crise telefônica que por cinco dias assolou o Brasil


O prezado Fernando Henrique Cardoso, em tempos idos na São Silvestre de 1953, torcia desesperadamente por Emil Zatopek, o tcheco chamado Locomotiva Humana, por ser ele representante do império soviético. Quando Jean-Paul Sartre visitou o Brasil, FHC grudou nele. O Brasil enxergava o professor de sociologia da USP como perigoso comunista. Muito tempo depois, em 1993, diria o nosso herói “esqueçam o que eu escrevi”, embora tivesse afirmado anos antes ter sido afastado da cátedra em consequência do golpe de 1964. Tampouco ficou clara a razão do refúgio que buscou no Chile, já que ninguém, de fato, armado ou não, estava disposto a lhe impedir a fuga.
Às vésperas da eleição para a Presidência da República, entrevistei-o e, de saída, lhe fiz a seguinte pergunta: “No tempo da visita de Sartre, você era vermelhinho, não é verdade?” Respondeu: “Não, eu já comungava Marx com Weber”. E eu: “No prefácio da primeira edição do livro Escravidão no Brasil Meridional, sua tese de doutorado, você escreveu ter usado a dialética marxista”. Esclareceu com rapidez fulmínea: “Sim, mas tirei a referência no prefácio da segunda edição”. Antônio Carlos Magalhães, imperador da Bahia e presidente do Senado durante o governo de FHC, decretava: “Ele não é tão de esquerda assim”.
Inúmeras são as façanhas do presidente que precedeu Lula. Nesta última semana, o País foi assolado, desde o sábado até a noite da quarta-feira, por uma crise telefônica que nos impediu de usar os aparelhos fixos do Oiapoque ao Chuí. Na origem, a privatização da Embratel, operada por FHC, conforme conta Carlos Drummond na sua reportagem desta edição. Consta que ele pretendia privatizar também a Petrobras, felizmente não conseguiu.
Outro tento daninho ele marcou ao comprar votos de parlamentares para realizar um sonho dourado, inserir na Constituição o segundo mandato. Logrou êxito, ao que tudo indica, porque a oferta material era satisfatória. No mais, quebrou o País três vezes, nos obrigando a recorrer à incômoda presença do FMI, que praticamente se tornou dono do Brasil, até o fim do seu segundo mandato, vítima de uma dívida externa monumental, quitada em seguida por Lula, seu sucessor, graças à vitória nas eleições de 2002.
Na presidência da República e, antes, como professor de sociologia, nunca deixou de ser figura dúbia e um tanto mitomaníaca
A ambição e a obsessão de protagonismo de FHC empurraram-no a cogitar do Ministério das Relações Exteriores no governo de Fernando Collor. Já saíra do PMDB do doutor Ulysses por considerá-lo quase direitista, para fundar, juntamente com outros filiados, um novo partido, o PSDB. Com ele foi também Mário Covas, o qual, diante da hipótese ventilada pelo companheiro de integrar o governo do monstro das Alagoas, ameaçou sair imediatamente da nova agremiação.
É certo que os dois não se bicavam. Em outra ocasião, deixada a direção da Veja e recebida do velho Octavio Frias e de Claudio Abramo, diretor de redação, a oferta de escrever para a Folha de S.Paulo, aceitei-a e, no fim de 2002, acompanhei como enviado especial Franco Montoro, candidato ao governo de São Paulo. Sentado no carro ao lado dele, atravessamos a zona açucareira do estado, para terminar em Rafard, onde, já de noite, a boleia de um caminhão posto à disposição da comitiva peemedebista tornou-se um palanque eleitoral, enquanto o vento punha a ciciar o canavial que nos cercava.
Ali Fernando Henrique discursou verborrágico e empolado, e Mário Covas veio até mim, sentado numa amurada, e então, a menear a cabeça num gesto de desaprovação, em perfeito silêncio, confessou o quanto o desagradava a fala do companheiro. Tempos depois, ao conversar em uma das festas anuais de CartaCapital, contei o enredo para despertar as gostosas risadas de Covas, então governador de São Paulo, no lugar de honra na mesa das autoridades no palco do auditório da Fiesp. A plateia ria com ele.
Em outra ocasião, no Aeroporto de Congonhas, onde eu estava à espera do meu fraterno amigo Raymundo Faoro, um emissário de FHC aproximou-se para me pedir que, a caminho da prefeitura de São Bernardo, parássemos para tomar um chá em xícaras de Limoges, servido por uma senhora de cabelos azuis, como a fada de Pinóquio, nada mais nada menos que a própria progenitora do futuro presidente. Na prefeitura esperava-nos uma assembleia de mochos presidida pelo próprio prefeito, a contar com a presença de FHC ao lado dele.
Tentaram nos demover do propósito que nos conduzira até ali e, obviamente, malograram no seu intento. Comboiei Faoro até o palanque, atravessando com muita dificuldade a multidão apinhada no estádio de Vila Euclides, para alcançar Lula ao meio de sua arenga. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O privatizador “
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