Editorial

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Na floresta dos enganos

O caso Battisti é dolorosamente representativo da ignorância nativa

Na floresta dos enganos
Na floresta dos enganos
Capturado na Bolívia pelos serviços secretos italianos, vai para a prisão de segurança máxima - Imagem: Alberto Pizzoli/AFP
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Cesare Battisti é o sinônimo da ignorância, infelizmente, típica do Brasil, secundada pela empáfia mística de François ­Mitterrand, aquele presidente francês bígamo, inventor de uma doutrina a levar seu nome, para garantir guarida a todos os subversivos do mundo. Ao cabo de um périplo de fugas pelo planeta, Battisti aportou à França atingida lá pelas tantas pelo governo italiano com um pedido de extradição. A própria polícia francesa cuidou de garantir a fuga de Battisti para o Brasil. Quem era a figura em questão? Um ladrãozinho do arrabalde romano, preso várias vezes, que acabou por dividir a cela na sua quarta detenção com o integrante de um grupo terrorista menor chamado Proletários Armados pelo Comunismo. Deu-se a célebre e fatídica centelha: Battisti achou uma motivação para a sua ferocidade natural e passou a integrar o grupo envolvido em quatro assassinatos, dois deles praticados em atuação solo. Chegando por aqui, foi conduzido para a prisão da Papuda, em Brasília, à espera de uma solicitação de extradição dirigida ao governo brasileiro.

Liberado, finalmente, graças às pressões que começavam em Paris pela boca do professor Dalmo Dallari, que como rico brasileiro morava na Ville ­Lumière, conforme o hábito de seus pares. Dizia o mestre ser Battisti um herói da resistência contra a extrema-direita italiana. Diga-se que, nas eleições de 1974, o Partido Comunista praticamente empatou com o Partido Democrata-Cristão e Aldo Moro, líder da facção de centro-esquerda do PDC, e Enrico Berlinguer, presidente do PCI, chegaram naquele momento a cogitar do muito falado e posteriormente nunca cumprido Compromisso Histórico, destinado a torná-los aliados para o mais profundo desagrado de Tio Sam. Foi então que, sequestrado pelas Brigadas Vermelhas, infiltradas pela CIA, Moro, enfim, foi assassinado ao cabo de um longo cativeiro. E o Compromisso saiu da moda.

Tarso Genro, Dalmo Dallari e Fred Vargas, inventores de um enredo impossível – Imagem: Ricardo Marques/Folhapress, Sérgio Lima/Folhapress e Valéria Almeida

Este episódio crucial da história italiana foi relatado também na reportagem da seção Plural desta edição sobre a publicação dos Cadernos do ­Cárcere, de Antonio Gramsci. No Brasil, depois de passar pela Papuda, Battisti foi posto em liberdade e seu destino entregue ao então presidente Lula, com o imediato aval do STF, exemplo magnífico de uma graúda maria que vai com as outras, incapaz de hesitar na hora de participar do golpe de Estado praticado contra Dilma Rousseff pelos próprios poderes da República, em 2016.

Montou-se aqui uma lamentável pantomima a receber o apoio total e irrestrito do então senador Eduardo Suplicy e da escritora de romances policiais francesa Fred Vargas, chegada em terra nativa para defender in loco a sua causa. Todos a desconfiar da lisura da Justiça italiana. Recordo-me ter conversado várias vezes a respeito da situação com Lula e com o ministro da Justiça, Tarso Genro, ao almoçar bacalhau na primeira delas e massa italiana na segunda. Em vão, a chamada esquerda brasileira alinhava-se a favor de Battisti e até um jornalista italiano morador do Rio de Janeiro, remeteu-me recados cibernéticos para dizer que a minha versão a respeito do preso da Papuda estava totalmente errada, e desagradava muito à já citada esquerda, a turma do PT em primeiro lugar. Também conversei com Dilma Rousseff antes de sua eleição. Jantava em minha casa e recordo a expressão de perplexidade a tomar conta do rosto da herdeira de Lula. “Vai sobrar para você”, eu adverti. Ela não respondeu, mas ergueu os olhos ao céu.

A decepção de Eduardo Suplicy – Imagem: Paulo Pinto/Agência PT

Os equívocos que recheiam o caso não se apagam até hoje e eis que a Folha de S.Paulo diz ter entrevistado Battisti. Onde? Reconhecido por todos como terrorista a esta altura, Battisti, localizado na Bolívia e ali preso pelos serviços secretos italianos, foi devolvido à terra natal e hoje se encontra em uma prisão de segurança máxima na ilha da Sardenha. Quem agora está perplexo sou eu e pergunto aos meus botões se o que diz a Folha, estranhamente reiterado pelo O Globo, em parte ao menos resultaria de um depoimento do próprio ao procurador Alberto Nobili, responsável pelo grupo antiterrorista de ­Milão. ­Cabe-me repetir o gesto da presidenta Dilma, ergui os braços e os olhos ao céu.

A ignorância constrói-se pela mídia nativa com o claro propósito de tornar Battisti um cabo eleitoral de Bolsonaro. Relatam os jornalões, como se Buster Keaton figurasse em suas redações, que o preso teria aberto fogo contra Lula, acusando-o de cinismo político. Ambos registram que, segundo o “entrevistado”, “todos sabemos que Lula é capaz de tudo para colocar de novo a faixa de presidente. É um animal político que nunca se contradiz. Aconteceu também comigo de admirar o seu cinismo e o extraordinário jogo de cintura”. A bem da verdade, o cinismo é o da própria mídia. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Na floresta dos enganos “

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